A luta por memória e justiça no Fórum Social Temático (FST)

Cristiano Morsolin *

O jornalista e sociólogo Ignacio Ramonet, ex-editor do jornal francês Le Monde Diplomatique, defendeu a criação e o fortalecimento de comissões da verdade para que os crimes cometidos por ditaduras não sejam esquecidos nem repetidos. Ramonet definiu o direito à memória com um novo direito humano, que precisa ser respeitado e garantido às vítimas e à sociedade.

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O relato do sofrimento e da resistência é indispensável para que novas gerações conheçam melhor o que se passou. Para que a memória não se degrade, é necessário que seja exercida em relação direta com o presente. É a única maneira de evitar a impunidade e de evitar que o horror se repita", disse o espanhol, que atualmente coordena a Associação Memórias das Lutas, com sede na França. Ramonet participou do debate Direitos Humanos, Memória e Justiça, numa sessão especial do Fórum Social Temático (FST) e do Fórum Mundial de Educação, que ocorrem em Porto Alegre.

Para o sociólogo, o reconhecimento da memória tem que ir além de reparações individuais às vítimas e às famílias de vítimas e precisa tornar públicos os horrores praticados pelas ditaduras. Ramonet defendeu a criação de instrumentos que permitam que toda a sociedade tenha acesso ao que ocorreu, como a construção de monumentos, museus e a criação de datas nacionais de homenagem às vítimas. "O que está em jogo é o direito das vítimas a uma reparação moral e o direito coletivo à memoria, a poder estabelecer oficialmente que a ditadura foi uma abominação e que a impunidade é insuportável, a poder denunciá-la e proclamá-la em museus, nos manuais escolares ou em dias de memória coletiva como o de hoje", disse, em referência ao Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, que se comemora nesta sexta-feira. Ao contrário das leis de anistia, que, segundo Ramonet, estimulam uma espécie de "amnésia coletiva" em relação às ditaduras, as comissões da verdade devem investigar e relembrar as violências praticadas durante os períodos antidemocráticos. "A verdade é uma resposta essencial para as vítimas e os sofrimentos devem ser reconhecidos publicamente. É preciso saber em que condições se violaram os direitos humanos dessas pessoas e quais foram as razões que conduziram os torturadores a fazer o que fizeram para que tenhamos uma ideia do que não se pode repetir", avaliou.

Segundo Ramonet, entre 1977 e 2011, mais de 30 comissões de verdade foram criadas em vários países, principalmente nos últimos dez anos. No Brasil, a instalação da Comissão da Verdade ainda não tem data definida para acontecer, falou a Agência Brasil do 27/01/2012.

A ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, disse que o governo está preparando o terreno para o início dos trabalhos. "A comissão foi aprovada e sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, que está fazendo a escolha dos nomes que vão compor o grupo. E, ao mesmo tempo, estamos organizando o sistema de funcionamento, porque vamos ter que oferecer à comissão lastro de trabalho, arquivos, abertura. Tudo o que estiver relacionado ao período da ditadura militar precisa estar acessível. Não tenho previsão para dar [sobre a data da instalação], mas temos a expectativa de que seja breve e já estamos trabalhando para isso".

Fórum Social Temático: memória da repressão política no meio rural durante a ditadura em debate

Uma grande homenagem àqueles que lutaram bravamente, durante o regime militar, pela reforma agrária e por condições mais justas de trabalho para os camponeses traduziu o lançamento do livro "Retrato da Repressão Política no Campo - Brasil 1962-1985 - camponeses torturados, mortos e desaparecidos". O momento também foi de reflexão e debate sobre o direito à memória e à verdade no cenário atual, e de reivindicações pela anistia e reconhecimento da trajetória dos que sofreram nesse período.

O evento, que aconteceu nesta quinta-feira (27), nas dependências do Memorial do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, foi promovido como parte das atividades paralelas do Fórum Social Temático 2012, pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural do Ministério do Desenvolvimento Agrário (NEAD/MDA), em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH).

A publicação, fruto de trabalho que teve início no governo Lula, integra ações do governo federal como as investigações conduzidas na última década pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a publicação do relatório Direito à Memória e à Verdade. As autoras Marta Cioccari e Ana Carneiro, além de realizarem pesquisas em diversos acervos documentais, percorreram o Brasil em busca das famílias e das história de camponeses torturados, mortos e desaparecidos. São Paulo, Pernambuco, Ceará, Distrito Federal e Goiás foram os estados visitados. Foram feitas entrevistas com líderes sindicais, assessores de entidades, advogados e familiares. "As histórias contidas no livro refletem apenas uma mostra do que ocorreu no campo naquela época obscura da história do nosso país. É escandaloso que isso ainda seja enfrentado em muitos lugares, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, e por isso precisamos lutar pela abertura cada vez maior de arquivos, para que essa realidade venha à tona e se consiga realizar mudanças efetivas", destacou Marta Cioccari, jornalista e antropóloga do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ).

O evento relembrou os camponeses torturados, mortos e desaparecidos por meio da presença e dos depoimentos de Francisco Blaudes Sousa Barros e João Altair dos Santos. Blaudes vivenciou o massacre de Japuara, conflito ocorrido em 1971 na fazenda de mesmo nome, na região do sertão cearense de Canindé, em que moradores da região se organizaram para resistir e tiveram que lutar pela vida contra a invasão de policiais e jagunços fortemente armados. Filho de Pio Nogueira, líder dessa resistência, que foi preso e torturado na época, Blaudes se emocionou ao falar do pai e do massacre. "Fomos à luta, criamos o sindicato local e depois partimos para sindicatos em terras vizinhas, o que irritou os latifundiários. Após o massacre, fomos perseguidos e presos, meu pai e mãe sofreram muito", narrou.

João Altair dos Santos representou seu pai, o líder camponês gaúcho João Machado dos Santos, o João Sem Terra. Ativista do Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master) nos anos 1960, João Sem Terra foi perseguido, preso, torturado e exilado no próprio país, ficando desaparecido durante 25 anos. João Altair contou como foi a sensação de não saber se o pai estava vivo ou morto. "Eu tinha apenas quatro anos de idade quando meu pai teve que fugir. Por causa da repressão, era proibido de falar que era filho do João Sem Terra, mas eu não entendia bem o porquê. Quando cresci, comecei a pesquisar o assunto e tinha muita vontade de conhecer meu pai, de saber se estava vivo ou não, de encontrá-lo de alguma forma. Foi muito emocionante quando descobrimos que ele estava vivo e hoje posso falar com orgulho do trabalho que ele procurou fazer. Se nós sofremos, imagino que ele deve ter sofrido muito mais por ter que abandonar a família", disse.

No evento foram lembrados também dois personagens do livro que partiram recentemente. Vicente Pompeu da Silva, ex-presidente da Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado do Ceará (Fetraece), que faleceu em 25 de março de 2011, e Euclides do Nascimento, fundador da Federação dos Trabalhadores rurais do Estado de Pernambuco (Fetape), falecido em 26 de dezembro de 2011.

Gilney Viana, coordenador do projeto Direito à Memória e à Verdade, apresentou dados preliminares referentes à busca pela anistia dos trabalhadores rurais que sofreram durante a ditadura, com base no livro Retrato da Repressão. Um exemplo são os pedidos de anistia. Dos 494 camponeses referidos na publicação, 91 requereram a anistia, ou seja, 18,4%. Destes, apenas 50 foram deferidos. "É um grupo ainda excluído socialmente, economicamente e historiograficamente. A grande maioria não conhece seus direitos", lembrou. O evento foi encerrado pela ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, que destacou a importância do livro e a necessidade de ampla divulgação de sua pesquisa, em diferentes meios, como Internet, em vídeos, e também nas escolas, para que as lutas camponesas durante a ditadura sejam conhecidas e que o respeito aos direitos humanos seja consolidado. "Os camponeses, na luta pela terra, ainda não receberam a devida atenção do Estado. Ainda não houve a reparação devida pelas mortes, pelos desaparecimentos, e o reconhecimento disso é fundamental para a luta democrática no país", enfatizou.

O lançamento também contou com a presença e participação do diretor do NEAD/MD, Joaquim Soriano; de Olívio Dutra, ex-prefeito de Porto Alegre, ex-governador do RS e ministro das Cidades no início do governo Lula; Luiz Antônio de Assis Brasil, secretário de Cultura do Rio Grande do Sul; José Francisco da Silva, ex-presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag); e Marco Antônio Rodrigues Barbosa, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

A parceria entre NEAD/MDA e SDH e continuidade do projeto sobre repressão política no campo no Brasil vão se dar por meio da produção de uma série de livretos que narram a trajetória de personagens que tiveram atuações marcantes na luta pela reforma agrária e sofreram com a repressão política na época da ditadura. Os primeiros três volumes, que estão sendo concluídos, abordam as histórias de João Sem Terra, do massacre de Japuara, e do líder camponês José Pureza.
(http://www.mda.gov.br/portal/nead/noticias/item?item_id=9233638)

A memória como direito e tarefa civilizatória

"Se não tiver vaias e aplausos no Fórum Social Mundial, não será Fórum Social Mundial". Com a frase, a ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, acabou acenando a bandeira branca à multidão que lotou o auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no início da noite de sexta-feira (27), no evento "Direitos Humanos, Justiça, Lutas e Memórias", promovido pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso). Maria do Rosário foi a terceira a tomar a palavra, depois que o auditório lotado consagrou, com palmas, o cientista político Emir Sader e o teólogo Leonardo Boff. Depois dela, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos veio em seu socorro, lembrando que o governo brasileiro era cheio de contradições internas e que o público que a vaiava deveria fortalecê-la para que cumprisse os compromissos assumidos em seu discurso, de luta pelos direitos humanos. "Eu confio 100% no que ela disse", afirmou Boaventura.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos afirmou que "o grande desafio do direito à memória é que é o direito ao futuro, mas também ao passado e ao presente". Diferenciou o direito à memória do direito à história. "O direito à história é o direito às histórias silenciadas pelo saber e pelo poder oficial. São aquelas histórias que aprendemos nas escolas e que vigoram como sendo a verdade dos tempos. A isso chamo de sociologia dos ausentes", disse. É o silêncio em relação aos oprimidos, discriminados e ao sofrimento humano. "O direito à memória é outra coisa. É o direito a vivências e experiências pessoais que constituíram a subjetividade [de indivíduos], e que eles têm que lembrar e serem respeitados por isso", explicou. Segundo Boaventura, a verdade histórica existe para essas pessoas, mas a subjetividade dessa memória permite apenas o seu conhecimento, jamais sua transmissão. "A verdade para eles está inscrita nos seus corpos, no seu sofrimento. Essa memória é intransmissiva porque as dimensões do sofrimento nunca se pode transmitir, mas pode ser reconhecida." O silenciamento, neste caso, também "torna impronunciável a revolta".

Propondo-se a ampliar o tema do direito à memória para o plano mundial, Boaventura inscreveu a escravatura como o episódio até hoje submerso pelo esquecimento. "Esta é uma história muito complexa, porque não é apenas dos financiadores europeus, mas a história dos africanos que escravizaram suas populações para vendê-las aos europeus". O peso dessa ausência de memória, segundo ele, até hoje resulta em revoluções, na África e na Ásia, e o colonialismo, todavia, é uma história que só começa a ser contada.

O colonialismo degradou colonizados e colonizadores, afirmou Santos. "Vejam a desgraça na Europa, que ficou cinco séculos a dizer às pessoas as virtudes da democracia e do desenvolvimento, e agora, numa crise econômica e financeira, não tem uma solução para os seus problemas e não sustenta a democracia". A Europa, que impôs o colonialismo ao mundo, agora está colonizada, mas por outros reis, disse Boaventura. Segundo ele, os primeiros ministros da Grécia e da Itália e presidente do Banco Central Europeu são, todos eles, ex-funcionários da Goldman Sachs.

Leonardo Boff afirmou que "a memória é subversiva porque aponta os que fizeram as atrocidades e restitui a dignidade das vítimas". E é uma "tarefa civilizatória". "Famílias tem direito não apenas à memória resgatada, mas dos restos que sobraram de sua dignidade, ossos e corpos. Para que nunca mais se esqueça e nunca mais aconteça", concluiu o teólogo.
(http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19492&editoria_id=5).

Itália julga ainda este ano sul-americanos envolvidos na Operação Condor

A justiça italiana vai julgar, ainda em 2012, dezenas de sul-americanos envolvidos com a Operação Condor. Eles são acusados de sequestro, massacre e homicídio qualificado de 25 ítalo-argentinos e ítalo-uruguaios, durante as ditaduras militares, nas décadas de 1970 e 1980. Entre os investigados estavam treze brasileiros, mas a maioria deles já falecidos - entre eles até o ex-presidente João Baptista Figueiredo.

O caso ganhou certa evidência na imprensa brasileira em 2007, quando a Justiça italiana expediu ordem de captura internacional aos investigados. Depois, foi esquecido. Na ocasião, a Itália pediu a extradição dos réus e ficou aguardando informações dos países sul-americanos. Ao todo, entraram na lista de procurados da Interpol 146 pessoas: 61 argentinos, 32 uruguaios, 22 chilenos, sete bolivianos, sete paraguaios, quatro peruanos, além dos treze brasileiros. O número de pessoas que serão julgadas será bem menor, porque boa parte destes 146 já faleceu. O procurador italiano Giancarlo Capaldo, responsável pelo inquérito, cansou de esperar pelas poucas informações que têm recebido de países como Brasil e Argentina, e vai concluir a investigação para que os réus sejam julgados. Capaldo está em Buenos Aires para resolver detalhes da investigação e, em março, o caso já estará nas mãos da Justiça.

Quem conta é Jair Krischke, do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, que auxiliou Capaldo na investigação. "Ele (Capaldo) estudou o processo todo e só faltam alguns detalhes que ele quer aperfeiçoar e também verificar se, neste ínterim, houve alguma novidade. A previsão é ter a sentença ainda no ano de 2011", afirma. A investigação da Itália começou após denúncia de familiares de vítimas das ditaduras que tinham cidadania italiana, em 1998, já que em solo sul-americano as leis de anistia dificultavam a punição dos culpados. Giancarlo Capaldo recolheu documentos e ouviu testemunhas em todos os países da América do Sul envolvidos com a Operação Condor. Capaldo procurou entender como funcionavam os aparelhos de repressão de cada país para indiciar os responsáveis pelas mortes. No Brasil, ocorreram dois desaparecimentos de ítalo-argentinos. Horacio Domingo Campiglia foi visto pela última vez no dia 12 de março de 1980, no aeroporto Galeão, Rio de Janeiro (atual aeroporto Tom Jobim). Lorenzo Ismael Viñas foi capturado quando atravessava a ponte que liga Uruguaiana à cidade argentina de Paso de los Libres, no dia 26 de junho de 1980. Os dois teriam sido entregues por órgãos repressores brasileiros à repressão argentina, e desapareceram.

Estes dois casos exemplificam como Giancarlo Capaldo definiu quem deveria ser capturado para depor à Justiça italiana. O procurador buscou os responsáveis diretos pelos atos e também a cadeia de comando. No Brasil, só foi possível mapear os comandantes dos aparelhos repressores, já que o país nunca investigou profundamente os crimes da ditadura militar. Assim, no caso de Horácio Domingo Campiglia, que ocorreu no Galeão, foram consideradas responsáveis autoridades nacionais, como o então presidente João Baptista Figueiredo e o então ministro do Exército, Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, ambos já falecidos, além de autoridades dos órgãos das polícias e do Exército no Rio de Janeiro. Já o caso de Lorenzo, ocorrido em Uruguaiana, envolve as mesmas autoridades nacionais e inclui autoridades gaúchas.

Em 2005, Jair Krischke ajudou Giancarlo Capaldo a entender como funcionava o aparelho repressor do Brasil e sua hierarquia. "Nessas estruturas hierárquicas, o chefe precisa saber o que seus subordinados estão fazendo. Tu és responsável pelas ações dos teus subordinados. Agora, se o chefe diz que não deu a ordem e prova que o crime foi cometido à revelia do comando, é responsabilizado apenas o autor do ato", explica Jair. Depois de oito anos de investigação, Capaldo conseguiu, em 2007, com que a Justiça italiana expedisse a ordem de captura internacional para que os réus sejam julgados. Em 2011, a Itália deve julgar tanto aqueles que foram capturados, quanto os que estarão ausentes, caso dos brasileiros ainda vivos. "A Itália julga na ausência. Os que estão presos serão ouvidos", afirma Jair Krischke a Sul21 (http://sul21.com.br/jornal/2011/02/italia-julga-ainda-este-ano-sul-americanos-envolvidos-na-operacao-condor/).

O Observatorio SELVAS luta por justiça na Operação Condor (www.voltairenet.org/ARGENTINA-BUSCANDO-JUSTICIA-PARA ) e no debate do Forum Social Mundial (http://www.redescristianas.net/2009/02/26/argentina-plan-condor-y-rol-de-la-iglesia-catolicacristiano-morsolin/ ).

*Cristiano Morsolin, operador de redes internacionais para a defesa dos direitos da criança na América Latina. Co-fundador do OBSERVATÓRIO SELVAS e colaborador internacional do Portal EcoDebate.

 

Fonte: www.ecodebate.com.br

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