Afro-brasileiros: dever da palavra e do testemunho

Ari Antônio dos Reis *

O mês de novembro é especial por fazer memória de Zumbi dos Palmares

Este momento, especial para os afro-brasileiros, sugere a necessidade de proclamar uma palavra vigorosa e eficaz sabendo da sua força e potencialidade transformação (Cf Ef 4,29).

A quem dirigir esta palavra? No contexto das vida dos afro-brasileiros sugere-se que ela seja dirigida interlocutores especiais. São convidados a ouvir a palavra, a proferir a sua palavra e assumir o compromisso do diálogo em vista de algo maior. Na proclamação da palavra compreende a necessidade vital do testemunho, pois palavra sem testemunho pode esvaziar-se.

Palavra aos afro-brasileiros
No primeiro grupo de interlocutores estão os irmãos negros que não tem consciência do valor da sua negritude. Tendo presente o respeito às opções individuais compreende-se que a palavra dirigida a estes irmãos deve ser uma palavra de acolhida, de entendimento, mas também uma palavra provocadora. Uma provocação saudável os levará a fazer uma viagem na trajetória familiar recuperando a grandeza desta mesma história que por diferentes motivos foram tentados a ignorar.

A palavra, neste caso, contribuirá na construção de uma consciência que vai além da aceitação da cor da pele. Muitos irmãos, não só tem vergonha da negritude e da história da sua família, como "não querem" ser negros. Gostariam de ser "outra pessoa". Neste caso, a palavra que conduz a auto aceitação, ao querer-se bem primeiro passo de outra caminhada.

Palavra à sociedade
É importante proclamar a palavra e dar o testemunho na vida em sociedade. A sociedade brasileira ainda é preconceituosa e discrimina os negros. Esta situação não é recente. Foi construída ao longo dos três séculos de escravidão para justificá-la. Era necessário desconstruir a imagem do negro enquanto pessoa revestida de dignidade, como portador de uma cultura milenar e enquanto sujeito religioso, para manter o projeto escravocrata. Uma pessoa aniquilada nos seus sustentáculos existenciais era mais fácil escravizar.

Vivenciamos as conseqüências deste discurso muito bem formulado e assimilado pela sociedade brasileira. A negação do afro-brasileiro enquanto sujeito de direitos foi naturalizada no Brasil. Proclamar a sua não naturalidade não é um processo fácil e rápido, como é o desejo de muitos agentes. Contudo é possível continuar neste processo de desconstrução porque fará bem para todos. Ele implicará na construção de outras formas de relações fundadas na igualdade racial, na justiça, na alteridade e no respeito ao outro. Neste caso é uma palavra profética que traz a denúncia e o anúncio. Por isso esta palavra deve ser articulada e sustentada. A palavra dada deve ensejar a esperança de uma sociedade justa e acolhedora de todos os grupos e culturas em suas diferenças.

Palavra dirigida à Igreja
O terceiro grupo de interlocutores está na Igreja. Compreende-se o corpo da Igreja, seus diferentes agentes. Nesta palavra pede-se para que a Igreja acolha e valorize a diversidade cultural dos que proclamam a mesma fé no ressuscitado. O encontro com Jesus Cristo não é privilégio de uma só cultura. A acolhida às culturas diferentes enriquece a Igreja e sua missão.

Algumas comunidades ainda estão fechadas aos afro-brasileiros a uma participação ampla. São comunidades que não tem o rosto dos negros. São caso em que o preconceito fala mais alto que o evangelho. O texto das Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil sugere abertura ao diferente como meio de superação deste fechamento: "contradiz profundamente a dinâmica do Reino de Deus e de uma Igreja em estado permanente de missão, a existência de comunidades cristãs fechadas em torno de si mesmas, sem relacionamento com a sociedade em geral, com as culturas, com os demais irmãos que também crêem em Jesus Cristo e com as outras religiões" (DGAE, 80).

O caminho da evangelização passa pela compreensão da diversidade cultural. A boa nova de Jesus compreende a diversidade dos interlocutores do anuncio missionário, dentre eles os afro-brasileiros. Esta orientação está no projeto da Igreja no Brasil: "Entre os grupos humanos, aos quais deve se dirigir o anúncio missionário, a partir de nossas comunidades eclesiais, estão também os povos indígenas e os afro-brasileiros, na perspectiva da evangelização inculturada, pelas atitudes de serviço, do diálogo, do testemunho e do anuncio explicito da mensagem cristã" (DGAE, 79)

Seria muito bonito, através da comunidade de fé, os negros e outros grupos culturais, aprenderem a gostar da sua história, da história dos antepassados. E também a gostar e valorizar a história dos outros irmãos que vem de raízes étnicas culturais diferentes. A riqueza da fé cristã está na sua acolhida pelas diferentes culturas. Esta se fortalece e ilumina tais culturas.

Palavra aos irmãos de caminhada
Cabe uma palavra aos agentes de pastoral que estão assumindo a mesma missão. Esta palavra deve ser de agradecimento pelo testemunho que estão dando. Em alguns momentos deve ser uma palavra de força, encorajamento, quando estão fragilizados.

A missão nem sempre é fácil. Assumir a causa dos afro-brasileiros, mesmo, sendo importante, pode trazer dificuldades, incompreensões. A construção de uma rede de apoio é necessária, pois o fortalecimento mútuo dos agentes na missão é necessário para que ninguém se perca no meio do caminho. Pode ser a palavra não proclamada, mas traduzida na mão estendida quando estão caídos no caminho lembrando o exemplo do Samaritano. Por vezes é a palavra da explicação que leva ao entendimento das coisas da cultura e de Deus (At 8, 35).

Pode ser a palavra que sugere a humildade, quando a prepotência nos assalta e impede de colocarmos os pés no chão. Lembremos que humildade vem de húmus - terra - chão - pó.
Pode ser, em alguns casos, a palavra semelhante a que Jetro dirigiu a Moisés (Ex 18). Em muitas situações é necessário dizer; "meu irmão, minha irmã, não faça tudo sozinho, partilhe a liderança, confie nos outros, trabalhe em grupo". É uma palavra que clama por participação e por divisão de responsabilidades.

Haverá momentos em que deverão ser pronunciadas as palavras da esperança e do ânimo para que se busque mais fôlego para continuar o caminho. "Já fizemos muitas coisas, mas ainda temos um caminho a percorrer". Nessa luta e nesse caminhar nos encontramos com o ressuscitado (Lc 24, 13ss).

A palavra da Oração
No caminhar vale a pena tirar um tempo para um quinto diálogo. É a palavra presente na oração, palavra que está na prece, no louvor ou no agradecimento. Jesus reservava tempo para rezar, para conversar com o PAI. Devemos tirar este tempo em meio as nossas atividades.

Deus é o maior interessado em nossa causa. Devemos confiar na sua ação e não apenas nas nossas construções. Esta confiança perpassa a oração, o diálogo com Aquele que nos ama e está conosco na caminhada. Enquanto agentes de pastoral devemos dar um testemunho de oração a fim de não correr o risco de reduzirmos nossa missão a uma empresa humana. A escuta da palavra é importante. É a Palavra de Deus: "lâmpada para os pés e luz para o caminho", aquela que, acolhida na gratuidade e alteridade, interpela a pessoa no que está fazendo (cf. DGAE. 52) acolhendo a proposta desta fonte inesgotável de saberia divina.

Através da força da palavra e do testemunho é possível ocupar espaço na missão da Igreja. Temos a graça da fé, fomos contemplados pela participação em uma tradição cultural milenar enriquecida em solo brasileiro.

* Ari Antônio dos Reis é presbítero da Arquidiocese de Passo Fundo, atualmente Assessor da Comissão Episcopal para o Serviço da Caridade da Justiça e da Paz da CNBB. Publicado na revista Missões, n. 09, Nov. 2011.

Fonte: Revista Missões

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