21 tiros na justiça

Maria Clara Lucchetti Bingemer *

Difícil acreditar que aquela mulher quase menina, com cabelos longos pretos, lisos e franja pudesse ser uma juíza, responsável pelo cumprimento da lei e emissora de sentenças sobre perigosos bandidos. Pois Patrícia Acioli assim o era. Reconhecida pelos pares, temida por seus juízos severos e sem contemplação, sobretudo com o crime organizado.

A juíza do "martelo de ferro" ou "martelo pesado" como era conhecida ignorava o sentimento do medo. Nem recuava diante do crime. Mais implacável ainda quando os réus em questão eram policiais. Em sua lógica de juíza, magistrado que tem por função ministrar a Justiça, à semelhança de desembargadores e ministros, Patrícia não titubeava em desempenhar sua função.

Conhecida como uma "juíza inflexível", que durante a última década condenou cerca de 60 policiais envolvidos em esquadrões da morte e milícias, Patrícia costumava pedir a pena máxima quando os acusados eram policiais. Não tolerava o fato de que aqueles que tinham como dever defender a vida e as pessoas passassem a atacá-la, agredi-la, exterminá-la, no descumprimento abusivo da lei.

Era uma servidora pública da justiça e como tal agia. Todas as tentativas de fazê-la "aliviar" sentenças ou tornar mais leves penas aplicadas a membros do crime organizado foram em vão. O martelo se abatia, pesado, manejado pela juíza destemida e incansável no desempenho de seu serviço. Pois não é este o significado da palavra "ministério"?

Essa trajetória implacável foi interrompida por uma saraivada de 21 tiros desfechada com a descarga do ódio e da vingança que explodia em fúria contra o destemor persistente e firme de Patrícia. A família, os filhos, os amigos ainda não conseguiram sair de seu estupor com a bárbara execução. E o estado do Rio de Janeiro treme, assustado com o fato e seus desdobramentos e significado.

Várias análises foram feitas sobre o brutal assassinato. Entre elas, destaca-se a avaliação da Anistia Internacional, que aponta quem verdadeiramente perde com o desaparecimento da juíza. "O assassinato de um juiz por homens armados destaca os profundos problemas da cidade com a corrupção policial e o crime organizado." E segue: " A morte de um juiz que estava simplesmente realizando seu dever desferiu um duro golpe sobre o Estado de Direito e o sistema judicial no Brasil".

Quando a justiça é silenciada a tiros, quem defenderá a lei e zelará pela segurança de um povo? Calando a voz de Patrícia Acioli, o crime organizado no Rio avança e ganha terreno. E quem perde é a população, cada vez mais acuada e temerosa de até onde podem chegar os agentes do terror que não se consegue conter. A corrupção avança e o desembaraço dos bandidos também. Não tendo nada a perder, eles não hesitam diante dos assassinatos sumários, como o da juíza, para amedrontar a população e acuar a polícia e a justiça.

O governo do Estado prometeu medidas enérgicas e rápidas para prender e punir os responsáveis pelo crime. A família espera uma solução. Assim também o povo. Espera-se sobretudo que não tenha que morrer violentamente mais um magistrado. Ou dois. Ou mais. Sobretudo que isso não aconteça porque a apuração do crime se arrasta, morosa e pouco eficaz.

O otimismo gerado na população carioca e fluminense pelo estabelecimento das UPPs e sua aparente eficácia em pacificar morros e comunidades antes atingidas pela violência recebeu golpe mortal com a execução da juíza. A corrupção da polícia encontra-se exposta e aberta como ferida purulenta nas entranhas da cidade e do estado.

Enquanto isso, a vida privada da juíza é devassada, exposta à indiscrição pública, comentada nas esquinas. Que importa quem era ou não seu namorado? Em que influi no perfil do caso se a juíza namorava ou não um policial?

O que importa, o que horroriza, o que amedronta e causa indignação é que matando Patrícia, o crime expôs seu rosto. E ele é feio, medonho. Odeia a justiça e quer silenciá-la por qualquer meio, não importa quão escuso seja. Ontem foi a juíza Patrícia Acioli. Amanhã poderá ser outro ou outra. Quando os juízes, servidores da lei, encontram-se indefesos e ameaçados, a segurança passa a ser verdade desejada e inexistente no horizonte vital de um povo.

* Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.

Fonte: www.adital.com.br

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