? margem da Vida

Egon Heck *

Uma pancada. Um corpo estendido no chão. Km 309 da rodovia que atravessa o país de norte a sul, a BR 163. O pipocar de luzes e sons acabaram de anunciar o Natal. A comunidade Kaiowá Guarani de Laranjeira Nhanderu, município de Rio Brilhante, amarga seu segundo Natal à beira da estrada. E agora indignada, denuncia a terceira morte por atropelamento. E a pergunta que já ecoou mundo afora, por tantas vezes, se repete - até quando? Até quando?

Toca o celular. É madrugada. Sendo a cobrar, logo imagino ser de alguma aldeia. Perguntam se já fui informado do "acidente", da morte de um rapaz. Olho para o relógio digital à minha frente. Digo que não. Então me passam para o líder Zezinho que explica a morte do jovem Serbino Martins Vilhalva , de 15 anos. Seus pais Placido Vilhalva e Marlene Alfredo Martins, acompanham silenciosamente o tortuoso caminho do corpo, para a funerária, depois para o IML, e amanhã será enterrado.

O atropelamento aconteceu no acostamento da estrada a uns 500 metros do grupo de seu Olimpio, onde estavam fazendo comemoração da data festiva. No local ainda restava uma grande possa de sangue e miolos espalhados pelo acostamento. O que terá acontecido nessa fatídica madrugada de Natal? No asfalto nenhum sinal de freio de carro. Apenas alguns pedaços do farol do carro responsável pelo atropelamento. O carro não parou. Será muito difícil identificar e punir eventuais culpados. Como desabafaram algumas vezes as comunidades Kaiowá Guarani, onde anualmente acontecem mais de duas dezenas de mortes por atropelamentos, "eles passam por cima como se fossem cachorros!". Não param, não prestam socorro e ninguém é preso.

Uma chuva fina embala a noite de Natal. Na comunidade do acampamento Kaiowá Guarani é mais um momento de desabafo. Será um dia de lembrar a luta diante de uma vida ceifada. Dia de lembrar que essa morte poderia ser evitada se seus direitos à terra não fossem tão irresponsavelmente postergados há décadas. Sob as lonas pretas mais um dia de indignação: Lula, Dilma,Pucinelli, juízes, magistrados,senadores, deputados, culpados diretos ou não, não rasguem a Constituição, demarquem as terras dos Guarani, só assim poderão celebrar a vida e não amargar a morte, de Laranjeira Nhanderu a Kurussu Ambá e Ypoí.

Possivelmente essa morte passará despercebida e impune, até porque a mídia estará ocupada com o que se passa no Palácio dos Bandeirantes, onde está sendo velado um ex-governador de São Paulo.

Jesus continua nascendo Guarani, pobre, à beira da estrada, nos confinamentos, à margem da vida. Continua nascendo como resistência, paciência histórica, sabedoria milenar, esperança.

Há dois dias fomos levar à comunidade de Laranjeira Nhanderu nosso abraço solidário de Natal e final de ano. Levamos algumas melancias. Foi um momento de alegria. Zezinho relatou que mais uma vez o presidente Lula lhes prometeu a demarcação da terra. E a Funai deu prazos. Tinham ido receber o premio da Aty Guasu, pela luta pelos direitos dos povos Kaiowá Guarani.

A vida continua na beira do asfalto. Que o quanto antes seja resolvido a questão da terra da comunidade para que vidas preciosas não continuem sendo impunemente ceifadas.]

* Egon Heck, Movimento Povo Guarani Grande Povo.

Fonte: Cimi MS

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