O olhar

Alfredo J. Gonçalves, CS *

Todo o olhar desvenda e desnuda. Ao pousar sobre outro, tira as máscaras, vê além das aparências. Ocorre isso porque os olhos costumam ser a janela da alma. Revelam em geral aquilo que gostaríamos de ocultar aos demais. Em numerosas ocasiões desmentem os gestos e a verborréia das palavras. Até mesmo os animais, com seu olhar aparentemente neutro e inexpressivo, muitas vezes parecem trazer à luz sentimentos genuinamente humanos, tais como tristeza e alegria, saudade e euforia, raiva e humilhação...

Entretanto, há olhares que desnudam para expor em praça pública a nudez de alguém que se acha indefeso. São os olhos da indiscrição, da curiosidade ou do voyeurismo irresponsável. De fato, é comum encontrar pessoas dispostas a invadir a privacidade alheia, submetendo-a ao escárnio e ao ridículo. Desvendam sem escrúpulo aquilo que o ser humano possui de mais íntimo e sagrado. Ao fazer circular determinadas imagens ou sentimentos, provocam a timidez, a vergonha ou a revolta. Como a fumaça, os segredos jogados ao vento não têm retorno.

De outro lado, há olhares que somente desnudam para, em seguida, revestir de profundo respeito a nudez do outro. Neste caso, só o amor é capaz de defrontar-se com a nudez sem reduzi-la a um escândalo ou ao vexame. Da mesma forma que põe a nu os segredos mais ocultos, o amor os cobre de carinho e ternura, evitando a exposição à curiosidade estranha. É assim que um corpo só pode permanecer nu diante do olhar amado, pois este o reveste de uma roupa invisível, mas nobre e sublime. Abrir a privacidade de uma pessoa é o mesmo que abrir o sacrário. Nos dois casos, estamos diante do mistério que não pode banalizado.

O primeiro tipo de olhar tende a rasgar e ferir, ao passo que o segundo afaga e protege. Ambos retiram da pessoa todas as defesas, deixando-a despida e desamparada. Mas enquanto um exibe a nudez como uma espécie de troféu de sua vitória, o outro a envolve numa nova veste que a deixa segura e confiante. Ambos podem ser comparados ao bisturi do cirurgião. A diferença é que o olhar possessivo e curioso corta o tumor para escancarar sua podridão, ao contrário do olhar amoroso, que corta para curar. Um aponta o dedo em riste sobre a ferida exposta, atraindo sobre ela a atenção de todos; o outro, usa o bálsamo da compreensão e da misericórdia para saná-la.

Por aí se explica porque muitos olhares nos fazem reagir com um desvio imediato, automático, quase involuntário. Sentimos a invasão e procuramos defender a intimidade violada. No trem, no ônibus, na multidão, nas ruas... é comum os olhares se cruzarem e se desviarem logo, ao ser surpreendidos. Também com o olhar é possível violentar um segredo alheio. Daí a reação inconsciente, instantânea. Diante de um olhar que ama, porém, permanecemos firmes e sem medo, pois a nudez está protegida da mera curiosidade. O amor nos deixa transparentes, nus e frágeis como a flor ao vento, mas, ao mesmo tempo, nos recobre com uma capa de profunda compaixão.

Ilustra bem isso o episódio da mulher adúltera no Evangelho de João (Jo 8, 1-11). Três olhares estão em cena: o da própria mulher surpreendida em adultério, o dos escribas e fariseus que carregam e acusam a mulher e o de Jesus. Trata-se, no fundo, de dois olhares apenas. Certamente a mulher já terá introjetado em si mesma a opinião daquela cultura legalista e marcadamente machista. Ela mesma provavelmente se vê como impura e pecadora.

Hoje diríamos que os escribas e fariseus representam o olhar da opinião pública. Esta desnuda a mulher, expõe seu pecado à luz do dia, para julgá-la, acusá-la e apedrejá-la. A exemplo de muitos setores da mídia e das multidões enfurecidas, a opinião pública guia-se unicamente pela letra da lei. Permanece cega e surda às circunstâncias históricas e à condição da acusada. É preciso que se cumpra o que está escrito.

O olhar de Jesus repousa com doçura sobre o coração e a alma da mulher. Não julga, apenas observa e ilumina, em silêncio. Joga uma luz nova sobre as entranhas mais íntimas do ser humano. Sabe que, muito mais que pecadora, aquela mulher é vítima do contexto social. Não ignora também a possibilidade do arrependimento e da conversão. Passa por cima de todo discriminação e preconceito. Concede uma nova chance a um coração que só quer amar e ser amado. A misericórdia prevalece sobre a lei. Mais ainda, Jesus inverte a situação do "tribunal público e popular". Aquela que vinha sendo julgada, condenada à marginalidade, é convidada ao centro. A ré torna-se referência para o julgamento dos pretensos juízes. "Quem dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra".

Qual não terá sido a surpresa dos escribas e fariseus, bem como da própria mulher! "Eu também não te condeno; vai, e de agora em diante não tornes a pecar". O pecado não é justificado, mas o pecador tem direito a uma nova oportunidade.

* Assessor das Pastorais Sociais.

Fonte: Alfredo J. Gonçalves, CS

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