Para a parlamentar, o governo federal se atrasou na elaboração de um plano emergencial para os povos indígenas no enfrentamento à pandemia
Por Renato Santana
A presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, a deputada federal Joênia Wapichana (Rede/RR), declarou em entrevista coletiva nesta quinta-feira (9), realizada por videoconferência, que há o risco iminente de genocídio de populações indígenas caso o novo coronavírus entre nas aldeias e comunidades, sobretudo nas terras indígenas com povos de pouco ou recente contato.
Conforme a deputada, durante reunião ocorrida mais cedo, o Ministério da Saúde e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) mostraram concordância com as consequências catastróficas que a proliferação da doença, a Covid-19, pode gerar nas comunidades indígenas. Representante do Alto Comissariado das Nações Unidas (ONU) esteve presente na reunião.
Para a parlamentar, o governo federal se atrasou na elaboração de um plano emergencial para os povos indígenas no enfrentamento à pandemia, mas entende que ele está em construção e contando com a participação de organizações indígenas e da própria Frente Parlamentar.
Com o intuito de acompanhar a formatação, que é feita em meio a ações já em curso e envolvendo diversos órgãos do Poder Executivo, Joênia trabalha no Congresso Nacional para aprovar uma Proposta de Fiscalização e Controle na formulação e aplicação das medidas governamentais para atender os indígenas enquanto durar a pandemia.
Os parlamentares da Frente Mista têm apresentado projetos de lei (PL). Uma das principais preocupações envolve a segurança alimentar e a chegada de cestas básicas nas comunidades. Joênia inclusive foi coautora de ao menos três deles e esteve próxima de um PL que pretende garantir a merenda escolar aos estudantes durante o confinamento. Como há muitos estudantes indígenas, a parlamentar pretende participar e garantir que a merenda chegue até eles.
“Na reunião de hoje o presidente da Funai (Marcelo Augusto Xavier da Silva) garantiu que há um plano de contingência para a distribuição das cestas básicas (…) nosso trabalho é para que esses planos não fiquem na ideia ou no papel. Queremos entender como funciona o plano e como será executado. Ele disse que a partir de segunda começa a ser executado”, afirma a parlamentar.
Joênia apresentou ainda o PL 1299/20, que altera a Lei 8080, de 19 de setembro de 1990. A lei regula, em todo o território nacional, as ações e serviços de saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito Público ou privado.
“O objetivo é justamente definir o mecanismo de financiamento específico em saúde aos povos indígenas, o fortalecimento da rede SUS (Sistema Único de Saúde) e medidas emergenciais para o enfrentamento a epidemias e calamidades públicas em terras indígenas”, explica Joênia.
A estratégia tem sido aproveitar o caráter da Frente Mista e apensar os projetos nas duas casas, Câmara e Senado, de forma concomitante. “Estamos na expectativa que a casa aprecie as proposições e elas sejam pautadas. É um desafio porque há muitas propostas, projetos, mas achamos que o atendimento aos povos indígenas é emergencial e precisa ser diferenciado”. Outra estratégias são reuniões periódicas.
“Nas reuniões da Frente Mista é necessário somar esforços, estamos buscando uma pauta positiva, inclusive organizações indígenas estão participando. São reuniões com a Funai, MPF, Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Caixa Econômica Federal. Em uma delas o Mandetta teve presente. Todos vão na linha que reconhecem que os povos indígenas são parte de um grupo de risco e vulneráveis”.
“Aldeados” e “não aldeados”
Dos 21 casos suspeitos para Covid-19, oito foram confirmados por testes e em dois outros casos os pacientes foram a óbito. Tratam-se de um indígena Mura e de uma anciã Baré. “A Sesai não atestou as mortes porque considera que (as vítimas) vivem em centros urbanos”, diz Joênia.
Sobre a diferenciação entre indígenas “aldeados” e “não aldeados”, contrariando a Constituição Federal e recente orientação do Ministério Público Federal (MPF), a parlamentar disse que o secretário da Sesai, Robson Santos da Silva, alegou que existe uma dificuldade de saber quem é ou não é indígena.
“A gente ouviu o secretário da Sesai e tem um desafio de legislação, a Constituição não difere, mas existe uma dificuldade do Estado de prestar esse serviço. O secretário foi nessa linha, da dificuldade de saber quem é indígena ou não. Aí tem gente dizendo que é indígena e não é”, afirma.
Para a parlamentar, é preciso que o subsistema público de saúde atenda de forma diferenciada todos os indígenas “sem discriminação”. “Os aldeados eles consideram aqueles em áreas de demarcação. Mas precisa ser atendido sem discriminação. O que estamos encaminhando agora é que não ocorra discriminação”.
A diferenciação é uma interpretação exclusiva do governo federal. Não está expressa na Constituição ou em qualquer outra lei. Conforme o secretário da Sesai explicou à reportagem, os indígenas considerados “não aldeados”, o que a legislação denomina como indígenas em contexto urbano, serão atendidos e computados em estatísticas pelo SUS convencional. Já os “aldeados”, os que em tese estariam no meio rural, pela Sesai.
Na reunião desta quinta, o secretário da Sesai informou que 6.300 kits de testes foram enviados aos Distritos Especiais de Saúde Indígena (DSEI) e também uma primeira remessa de equipamentos de proteção, como máscaras, luvas e roupas especiais. Joênia afirma que o secretário tem buscado o diálogo com a Frente Mista e demais organizações indígenas.
Funai pede ajuda
O presidente da Funai, durante a reunião, pediu ajuda à Frente Parlamentar Mista para brigar por recursos para o órgão indigenista, admitindo um déficit no órgão, e pela realização de concurso público. “O presidente nos disse que há 1700 servidores e que o órgão precisaria de 3500 (…) o órgão que cuida de 13% do território nacional está completamente sucateado”, disse Joênia.
Para a parlamentar está demonstrando como as dificuldades para impedir invasores nas terras indígenas envolve este processo de sucateamento, que não só pode levar destruição aos territórios como também a Covid-19 em suas proporções mortíferas. “Então apresentamos a preocupação com o aumento de invasões a terras indígenas. Esse período de crise não fez frear as invasões dentro das terras indígenas buscando explorar recursos naturais”, diz.
“Recebemos denúncias de invasões nas terras indígenas Raposa Serra do Sol (RR), Yanomami (RR) e Munduruku (PA). Teve o assassinato do Zezico na Terra Indígena Arariboia (MA), do povo Guajajara, que Sônia (Guajajara, da Apib) tem denunciado. Com certeza deve haver outras”. Há recentes denúncias nas terras indígenas Karipuna, em Rondônia, Vale do Javari, no Amazonas, e Xakriabá, em Minas Gerais.
Joênia acredita que neste momento o presidente Jair Bolsonaro está isolado em seu negacionismo imanente. Entende que há diálogo com outros setores do governo que entendem a gravidade da situação e estão trabalhando pelo isolamento social, garantia de atendimento das aldeias pelo sistema de saúde e segurança alimentar. No entanto, defende, é preciso cobrar e fiscalizar.
“O presidente tem feito de uma forma clara e pública que ele não segue as recomendações da OMS (Organização Mundial da Saúde). Por outro lado, o Ministério da Saúde, a Funai e Sesai destacam que não é essa a política. Respeitam e implementam as orientações da OMS e o isolamento social. A Sesai tem reforçado a comunicação para que os indígenas mantenham o isolamento social. O MPF também tem feito orientações nesse sentido”.
Emergência nas aldeias e leitos hospitalares
Além da segurança alimentar, outra preocupação da Frente Parlamentar Mista é com a oferta de leitos hospitalares. Para Joênia, não há leitos disponíveis para a população de um modo geral; imagina aos indígenas. Então ela tem atuado para que os governos federal e estaduais criem alternativas. Ela cita o próprio estado, Roraima.
“Em Roraima há 18 leitos de UTI. O governador (Antonio Denarium – PSL) declarou que quer aumentar para 55. Mesmo assim ainda é pouco. Tem ainda a questão dos indígenas venezuelanos. Então o Exército está construindo um hospital de campanha e garantiu que haverá vagas para os indígenas. Não será apenas para os indígenas, mas os atenderá. A preocupação é aumentar a oferta de leitos aos indígenas”, explica.
A garantia de leitos, explica a parlamentar, deve vir acompanhada da disponibilidade de equipamentos de segurança, máquinas de ventilação respiratória, a questão da segurança alimentar. “O ministro da Saúde reconheceu que existe essa preocupação, que hoje isso tudo está em dificuldade de conseguir, aí é necessário reforçar essa prevenção, o confinamento social, para que o sistema dê conta”.
Joênia ressalta que a preocupação maior é com os estados e os municípios. “Como os estados vão receber os indígenas, como os municípios vão receber. Precisamos ter um plano pra baixa e alta complexidade. Estamos trabalhando nisso (…) A nossa pauta deve ser positiva, por mais que saibamos dos problemas deste governo, agora é a hora de garantirmos a alimentação, a água nas aldeias, os equipamentos de proteção, os leitos, a proteção das terras indígenas”.