Haiti. O ensino superior depois da tragédia.

Entrevista especial com Sebastião Nascimento

Antes dos terremotos, o Haiti tinha uma única universidade pública, a Universidade de Estado do Haiti, que vivia sérios problemas para oferecer vagas, não tinha um campus central ou uma biblioteca. "E, ainda, a pesquisa e a formação de professores era uma incumbência relegada a segundo plano por uma instituição quase inteiramente voltada para o ensino, reproduzindo, geração após geração, uma escassez crônica de professores qualificados e de pesquisadores em número suficiente para sustentar atividades vitais de investigação, especialmente em áreas estratégicas para a reconstrução do país e o desenvolvimento de sua economia, como a gestão de recursos ambientais, a produção de alimentos, o manejo da infraestrutura etc.", relata o professor Sebastião Nascimento durante entrevista que concedeu à IHU On-Line, por e-mail.

Nascimento faz parte de um grupo de pesquisa que estava no Haiti durante os terremotos e viu os problemas no ensino superior se agravarem. Assim, sua equipe de pesquisa no Brasil, junto com amigos e colegas haitianos, firmou um acordo de cooperação entre os dois países, visando à recuperação das atividades acadêmicas no país. "São inúmeras as áreas em que a comunidade acadêmica e científica brasileira teria muito a oferecer. Em termos de envolvimento na formação de estudantes haitianos, é possível se beneficiar de bolsas de estudo para concluir sua formação em instituições brasileiras ou para dar continuidade a eles em programas de pós-graduação", afirmou.

Sebastião Nascimento é graduado e mestre em Direito pela Universidade de São Paulo. É doutor em Sociologia pela Universität Flensburg (Alemanha) e professor da Universidade Estadual de Campinas. Atua, principalmente, com os temas de minorias nacionais, racismo, conflitos armados, desigualdade e homogeneização nacional.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Sua equipe de pesquisa estava no Haiti durante o grande terremoto que atingiu o país. A partir dessa experiência, como o senhor acha que esse desastre impacta nas instituições de ensino superior do Haiti?

Sebastião Nascimento - Tinha a viagem marcada para me juntar a eles na semana do terremoto, mas, com o fechamento do aeroporto e o cancelamento dos voos, tudo mudou e tivemos de refazer todos os planos. Já desde o primeiro momento, especialmente por conta de nosso envolvimento direto com as instituições acadêmicas haitianas ao longo de diversos trabalhos de pesquisa realizados no país, ficou evidente que o impacto sobre elas havia sido de enormes proporções. Imediatamente, começamos a discutir e a elaborar propostas para fazer frente ao desafio de oferecer uma ajuda mais direta aos estudantes afetados pela morte de seus colegas e professores e pela destruição de suas universidades.

Também estivemos muito atentos ao impacto sobre o sistema educacional de base, primário e secundário. Contudo, era preciso reconhecer a prioridade de uma intervenção urgente junto aos estudantes universitários, pois seriam eles os que mais rapidamente poderiam assumir um papel decisivo no esforço de reconstrução, inclusive como gestores e educadores nos setores educacionais de formação básica. Assim, preparamos a proposta de um diagnóstico emergencial do impacto do terremoto nas instituições de ensino superior do Haiti, de modo a oferecer subsídios para as iniciativas de reconstrução nesse setor. Tivemos uma resposta favorável da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior (CAPES), que já vinha elaborando, há algum tempo, iniciativas de cooperação e intercâmbio com o Haiti e necessitava precisamente de dados e informações que permitissem ajustar os instrumentos que pretendiam implementar.

IHU On-Line - E quando o senhor chegou ao Haiti, qual era o cenário?

Sebastião Nascimento - Foi no quadro desse levantamento que fui então a Porto Príncipe algumas semanas depois do terremoto e investiguei e registrei de perto a extensão dos danos ao sistema universitário haitiano. O cenário era desolador: várias faculdades e mesmo universidades inteiras haviam desabado inteiramente, fazendo perecer, ferindo, mutilando, ou desalojando um número imenso de estudantes, professores, funcionários e de seus familiares. Muitos daqueles que não ruíram completamente terão de ser demolidos ou terão de passar por uma restauração custosa e prolongada. E, enquanto isso não acontece, essas ruínas inviabilizam o uso do espaço dos campi.

Vários outros problemas decorrentes do terremoto se somam a isso, como, por exemplo, o fato de que muitos dos professores deixaram a cidade ou mesmo o país. Além disso, pelo menos metade dos estudantes deixou a capital rumo ao interior à procura de abrigo e apoio junto a familiares em outras cidades e, ainda, não existem espaços alternativos que pudessem ser utilizados para a realização de atividades acadêmicas em caráter provisório, uma vez que praticamente todos os espaços públicos foram convertidos em campos de refugiados. Na medida em que a maioria das instituições ainda não havia digitalizado seus arquivos (incluindo o próprio Ministério da Educação Nacional e da Formação Profissional), o terremoto provocou também a destruição de grande parte dos arquivos e registros escolares. Outro agravante é que praticamente se esgotaram os recursos das estruturas de suporte familiar que asseguravam as condições mínimas para que os estudantes pudessem se manter na capital enquanto frequentavam as universidades.

Tudo isso produz um cenário sombrio para a recuperação das atividades acadêmicas no país. Com um grande esforço pessoal de vários dos membros de nossa equipe de pesquisa no Brasil, e o engajamento de diversos amigos e colegas haitianos, foi-nos possível elaborar um relatório preliminar sobre a situação do ensino superior após o terremoto. Isso permitiu subsidiar o acordo de cooperação que foi assinado entre os dois países durante a visita do presidente Lula às tropas brasileiras estacionadas no Haiti.

IHU On-Line - Antes dos terremotos, qual era a situação do ensino superior haitiano?

Sebastião Nascimento - A Universidade de Estado do Haiti (UHE) foi a primeira e continua sendo a única universidade pública em Porto Príncipe, tendo sido fundada em 1960, congregando faculdades que já funcionavam autonomamente há várias décadas. Tradicionalmente, essa universidade desempenhou um papel institucional de imenso relevo na história política e social haitiana, representando um centro incontornável de legitimação ou deslegitimação de iniciativas governamentais e uma referência incontestável na formulação e implementação de políticas públicas e formação de quadros qualificados. Contudo, jamais foi capaz de atender a toda a demanda por acesso ao ensino superior no país.

Mesmo com os seriíssimos problemas que maculam o sistema de ensino básico no Haiti, sempre houve uma concorrência muito acirrada pelas exíguas vagas oferecidas pela UEH. Foi somente com a democratização posterior ao fim da ditadura que o sistema universitário haitiano foi ampliado e diversificado. Com essa abertura, houve uma explosão no número de universidades, faculdades, escolas superiores e centros educacionais, sem qualquer possibilidade de controle ou fiscalização por parte do Ministério da Educação Nacional.

Assim, havia uma diversidade imensa de perfis institucionais e de níveis de qualidade no ensino e na pesquisa em meio à miríade de instituições de ensino superior ativas no país, desde centros de pesquisa e formação que não ficavam a dever em nada a seus correlatos regionais, passando por instituições experimentais que procuravam fazer frente a desafios da paisagem social haitiana. Até escolas que enfrentavam cotidianamente dificuldades insuperáveis ao tentar oferecer a seus alunos mesmo os serviços educacionais mais básicos estavam inseridas nesse cenário. Mesmo a Universidade de Estado enfrentava sérios problemas como aqueles que afligiam as instituições particulares de ensino superior. Por exemplo, não existia um campus central, e as faculdades se encontravam dispersas por toda a cidade, obrigando os alunos a deslocamentos muito dispendiosos, em termos de tempo e recursos.

Além disso, jamais foi criada uma biblioteca universitária, e o material bibliográfico utilizado pelos alunos era extremamente precário e obsoleto, fazendo com que tivessem de despender consideráveis recursos na aquisição de livros importados. E, ainda, a pesquisa e a formação de professores era uma incumbência relegada a segundo plano por uma instituição quase inteiramente voltada para o ensino, reproduzindo, geração após geração, uma escassez crônica de professores qualificados e de pesquisadores em número suficiente para sustentar atividades vitais de investigação, especialmente em áreas estratégicas para a reconstrução do país e o desenvolvimento de sua economia, como a gestão de recursos ambientais, a produção de alimentos, o manejo da infraestrutura etc.

IHU On-Line - Quanto tempo e como essas instituições podem ser recuperadas?

Sebastião Nascimento - Os danos foram consideráveis, e os recursos são escassos. Absolutamente nada do que se pode ver nos esforços recentes de mobilização e canalização de recursos ao Haiti permite prenunciar qualquer coisa diferente do que vinha sendo o caso antes: uma distância intransponível entre o mundo institucional da cooperação internacional e as instituições locais haitianas, a incompetência técnica e a gritante ignorância da realidade local por parte das agências internacionais. E, ao mesmo tempo, o clientelismo e a passividade que isso reforça nas instituições locais haitianas, um caráter excessivo e desnecessariamente militarizado da presença internacional no país, a priorização injustificada dos recursos para questões de segurança, em detrimento das demandas e necessidades de infraestrutura. Além disso, há a irresponsabilidade de todos os agentes nacionais e internacionais envolvidos na implementação de ações e programas de intervenção, o que favorece amplamente o desperdício de recursos, a corrupção e a incompetência.

Por tudo isso, o que se pode esperar é que, passado este primeiro semestre, em que certamente nada ocorrerá nas faculdades e universidades haitianas, tenha início uma fase de rotinização das novas circunstâncias de miserável precariedade a que foi lançada a comunidade acadêmica. Outro enorme problema crônico que marcava a vida universitária haitiana antes do terremoto e deve ser levado em conta e abordado em qualquer iniciativa de promoção da reconstrução é a marcada sub-representação e elevada especialização involuntária feminina em meio ao corpo discente de praticamente todas as áreas, com a exceção da enfermagem. A participação das estudantes nos cursos superiores, seja em outras áreas da saúde, seja em cursos técnicos ou das ciências humanas, tem-se mantido extremamente baixa ao longo dos anos, e isso apesar de um desempenho escolar equiparável (ou mesmo melhor, diriam muitos) ao dos seus colegas. Um problema como esse denuncia a persistência de fatores econômicos e de segurança envolvidos na decisão das mulheres de deixar o sistema escolar antecipadamente ou de optar em meio a um espectro muito estreito de carreiras.

IHU On-Line - Como a cooperação e o intercâmbio acadêmico e científico com o Brasil podem ajudar na recuperação?

Sebastião Nascimento - São inúmeras as áreas em que a comunidade acadêmica e científica brasileira teria muito a oferecer. Em termos de envolvimento na formação de estudantes haitianos, é possível se beneficiar de bolsas de estudo para concluir sua formação em instituições brasileiras ou para dar continuidade a eles em programas de pós-graduação. Já em termos de cooperação mais direta, com o envio de grupos de pesquisadores, professores, técnicos e especialistas para se envolverem diretamente com iniciativas de reconstrução e para orientarem programas incipientes de formação local, adaptados à premência das novas necessidades geradas pelo terremoto, que aos poucos vão sendo concebidos e implementados.

Algumas áreas se destacam como mais carentes de apoio neste momento: formação de pessoal de saúde (especialmente nas áreas de cirurgia, enfermagem e odontologia, mas também com atenção especial a programas de saúde pública preventiva, similares às iniciativas de formação de agentes de saúde); conservação, manejo e recuperação de solos e de recursos hídricos; engenharia de alimentos, ciências do meio ambiente, agronomia, zootecnia; engenharia civil; formação técnica e profissionalizante, especialmente em áreas como a construção civil; além, é claro, da linguística, algo que realça a necessidade de consolidação de uma instituição de referência para o intercâmbio cultural entre os dois países e a formação de pessoal qualificado para garantir a continuidade e a eficiência das iniciativas de cooperação, sem o paternalismo, o unilateralismo e o amadorismo que costumam macular tais iniciativas, não importando se as boas intenções vêm do Brasil ou de qualquer outro país.

Fonte: IHU - Instituto Humanitas Unisinos

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