Ceci Baptista Mariani *
Sobre a Carta Encíclica Caritas in Veritate de Bento XVI
Para a Igreja o desenvolvimento humano integral tem como força propulsora a caridade na verdade testemunhada por Jesus Cristo. Contemplando a sua vida, morte e ressurreição, a comunidade eclesial descobre e anuncia como verdade o amor oblativo, isto é, o amor que sai de si e se dirige ao outro, não para submetê-lo, mas para libertá-lo. Para Bento XVI, o mundo contemporâneo perdeu o sentido do amor e da verdade e em sua carta convoca a Igreja para que, junto com os homens de boa vontade, reflitam sobre o amor e a verdade e sobre como o amor vinculado à verdade contribui para o desenvolvimento integral diante dos desafios de um mundo contemporâneo concentrado no desenvolvimento econômico.
1) "Seguindo a verdade em amor, cresceremos em tudo..." (Ef 4,15)
Para Paulo, a caridade designa a realidade e a perfeição da vida cristã, é uma atmosfera em que Deus e os cristãos vivem juntos. Comunicado por Deus, é o amor "ágape" que permite a formação da comunidade cristã e a existência do cristão individual. A verdade em Paulo, portanto, não é uma doutrina ou uma idéia, mas é uma vocação a que todos somos chamados. Mudar a verdade em mentira é um esforço estúpido de auto-engano. Na intenção de cometer injustiça, de agir em prol de si mesmo contra o outro, o homem mente a si mesmo e ao outro sobre o vínculo estabelecido com o mundo por Deus, fabricando um Absoluto sobre o qual possa exercer poder.
Seguir a verdade em amor para crescer integralmente em direção ao Cristo é fundamentalmente tomar consciência de que o mundo encontra-se aprisionado pela injustiça. O desenvolvimento humano supõe, portanto, enfrentar a injustiça seguindo a verdade no amor. Não existe, então, para Paulo verdade sem amor.
2) A caridade na verdade como princípio para a ação social do cristão
Preocupado com o problema do relativismo contemporâneo, Bento XVI adverte, que a caridade deve ser compreendida, avaliada e praticada sob a luz da razão e da fé. Por isso procura complementar Paulo, assinalando a relação entre a caridade e a verdade na direção inversa como caridade na verdade. A caridade sem verdade, ele denuncia, acaba desvirtuada em emotivismo e/ou fideísmo (CV n.3). A verdade, ele complementa, cria o diálogo porque, fazendo sair das opiniões e sensações subjetivas, permite ultrapassar determinações culturais e históricas para promover comunicação e comunhão (CV n.4). A caridade na verdade é princípio que orienta a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da ação moral, dentre os quais destaca o critério da justiça e o critério do bem comum, requeridos pelo compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização. A caridade supera a justiça, mas nunca existe sem justiça. Só o amor na verdade, exorta Bento XVI, levará ao desenvolvimento humano e humanizador.
3) Pensar o desenvolvimento sob a inspiração da Populorum Progressio
Bento XVI faz referência à Populorum Progressio (1967) de Paulo VI, que foi escrita como resposta da Igreja ao clamor dos povos da fome, tinha em vista a necessidade de fazer sair esses povos da miséria, das doenças endêmicas e do analfabetismo. "A Igreja estremece perante este grito de angústia e convida cada um a responder com amor ao apelo do seu irmão" (PP n.3) . Nessa encíclica, Paulo VI, comovido pelas dificuldades de povos oprimidos em luta com o problema do desenvolvimento que ele viu com os próprios olhos e quase tocou com as mãos em suas viagens à América Latina, África, Índia e Terra Santa, faz um apelo solene "a uma ação organizada para o desenvolvimento integral do homem e para o desenvolvimento solidário da humanidade" (PP n.5), que não se reduz ao desenvolvimento econômico, mas que chama a atenção para o cuidado com o humano.
O desenvolvimento humano para o cristão deve culminar na realização da vocação humana de seres de transcendência, abertos ao infinito, implica antes de tudo, a passagem de condições menos humanas a condições mais humana. A verdade do desenvolvimento consiste na sua integralidade: se não é desenvolvimento do homem todo e de todo o homem, não é verdadeiro desenvolvimento. Esta é a mensagem central da Populorum progressio, válida ainda hoje e sempre.
4) O desenvolvimento humano e os desafios contemporâneos
Na avaliação de Bento XVI, novos problemas desafiam o desenvolvimento humano: as forças técnicas em campo, as inter-relações a nível mundial, os efeitos sobre a economia real de uma atividade financeira mal utilizada e majoritariamente especulativa, os imponentes fluxos migratórios provocados e depois não geridos adequadamente, a exploração desregrada dos recursos da terra (CV n.21).
Vale ler com cuidado a crítica de Bento XVI ao sistema econômico em sua atual configuração que faz crescer a riqueza mundial em termos absolutos, mas aumentam as desigualdades (CV n.22-31). Nesse novo contexto, a proposta do cristianismo para o desenvolvimento humano é a caridade na verdade que coloca o homem perante a admirável experiência do dom. A comunidade dos homens nunca será plenamente fraterna se não tomar consciência que o desenvolvimento é obra da graça de Deus-Amor. O grande desafio do cristão é mostrar que o desenvolvimento econômico, social e político, para ser autenticamente humano, devem dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão da fraternidade. (CV n.34)
O desenvolvimento dos povos implica ainda uma reflexão sobre os direitos e deveres, muito mais sobre os deveres, ele pondera, pois "a exasperação dos direitos desemboca no esquecimento dos deveres" e "a partilha dos deveres recíprocos mobiliza muito mais do que a mera reivindicação de direitos" (CV n.43). Ele reafirma sua crítica ao perigo do hedonismo e o dever da Igreja de continuar a propor o matrimônio e da família, mostrando a beleza dessas instituições e sua potencialidade para responder às exigências do coração da dignidade da pessoa (CV n.44), faz considerações sobre a relação entre empresa e ética (CV n.46-47) e encerra esse capítulo falando do relacionamento do homem com o ambiente (CV n.48).
Para Bento XVI, o desenvolvimento dos povos está também associado com a capacidade humana de estabelecer relações de colaboração, constituir uma só família. Propõe como princípio orientador a subsidiariedade ligado ao princípio da solidariedade. Essa relação de ajuda, deve se dar no nível da educação, (CV n.61); no campo do turismo (CV n.61), das migrações (CV n.62); das relações de trabalho (CV n.63-64); das finanças (CV n.65); do consumo (CV n.62) e também no âmbito da interdependência mundial (CV n.67).
E finalmente, Bento XVI afirma que o desenvolvimento dos homens e dos povos para ser autêntico, requer "olhos novos e um coração novo, capaz de superar a visão materialista dos acontecimentos humanos e entrever no desenvolvimento um ‘mais além' que a técnica não pode dar" (CV n.77).
5) Olhar com os olhos, tocar com as mãos!
Agradecemos ao esforço do Papa em chamar nossa atenção para a necessidade de ter sempre como referência em tudo o que fazemos a verdade do que somos, seres abertos à transcendência e, justamente por isso, chamados à caridade. No entanto, em se tratando de desenvolvimento e necessidade de espiritualidade, não podemos deixar de lembrar da contribuição que dá para esse tema a Igreja da América Latina, enquanto "vivência espiritual dos cristãos comprometidos com o processo de libertação iniciado pelos pobres da América Latina com vistas à afirmação de suas dignidades humanas de filhas e filhos de Deus" (frei Gustavo Gutiérrez).
Concretamente, a espiritualidade libertadora vivida, refletida e retomada pelas CEBs no 11º Intereclesial (2006), que afirma como caminho de abertura à transcendência, o compromisso com a transformação da realidade em solidariedade com os sofrimentos dos pobres, podemos dizer, é um bom exemplo de resposta à preocupação de Bento XVI, válida para a América Latina e também para toda a Igreja na medida em que nasceu por inspiração daqueles que, como Paulo VI, viram com os olhos e quase tocaram com as mãos o sofrimento dos povos da fome.
* Ceci Baptista Mariani, doutora em Ciências da Religião, Mestre em Teologia e professora de teologia na EDT, PUC-Campinas e ITESP.
Fonte: Revista Missões