IHU *
Entrevista especial com Attilio Hartmann
O primeiro Mutirão da Comunicação organizado para reunir países de toda a América Latina e Caribe aconteceu numa data diferente do que foi planejado. Em função da expansão da gripe suína, o evento foi protelado de julho de 2009 para fevereiro de 2010 e isso, segundo o Attilio Hartmann, coordenador de comunicação do mutirão, padre jesuíta e jornalista, não foi propício para a realização de um evento como esse. "Se foram de grande importância e significado as palestras, seminários, oficinas, exposição de artes, shows e tudo o que o Mutirão apresentou como oportunidades, foi relativamente pobre a presença de público, tanto nas atividades acadêmicas, quanto nas artísticas e culturais", analisou ele durante a entrevista que concedeu à IHU On-Line, por e-mail.
Attilio falou sobre a experiência deste mutirão latino-americano que reuniu pessoas de 37 países para debater temas como a cultura solidária e a perspectiva de uma nova cidadania comunicacional. "Comunicação não é mais ‘coisa de jornalista'. E o Mutirão quis exatamente contribuir para este novo conceito e prática de comunicação, especialmente dentro da instâncias eclesiais. Comunicação é processo, é políticas, é pesquisa, é diálogo e é, também, mídias. Assim, diante do avanço espetacular das novas tecnologias da informação e da comunicação, o desenvolvimento de novos códigos e linguagens e a importância, cada vez mais valorizada, dos espaços de diálogo e debate, a comunicação se converteu em um elemento fundamental no processo de mudança de mentalidades", refletiu.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Esse foi o primeiro Mutirão da Comunicação latino-americano, reunindo 37 países. Como foi essa experiência?
Attilio Hartmann - Bem, sou parte da própria história deste evento que, neste Mutirão, por proposição minha, ganhou esta dimensão continental.
No Brasil, o Mutirão da Comunicação é realizado desde 1998 - este foi o Sexto Mutirão Brasileiro de Comunicação - com o propósito de ser um espaço de intercâmbio, atualização, reflexão e aprofundamento sobre os temas da comunicação e da sociedade e como instância de mediação e socialização entre aqueles que trabalham no campo da comunicação.
Os temas enfocados nos cinco mutirões anteriores dão o enfoque do que se quer com estes eventos. Assim, no primeiro mutirão (julho de 1998/Belo Horizonte/MG) o tema foi: Solidariedade-Ética-Cidadania; no segundo, (julho de 2000-São Paulo/SP), Relações Solidárias na Aldeia e no Global; no terceiro (julho/2003-Salvador/BA), "Comunicação para outra ordem social", no quarto, (julho/2005-Guarapari, Vitória/ES) Comunicação e Responsabilidade Social e, finalmente, o quinto (julho de 2007-Belém/PA), Comunicação e Amazônia - Fé e Cultura de Paz.
Na verdade, o Mutirão continental significou a conjunção dos mutirões brasileiros de comunicação com os congressos (três) organizados pela OCLACC (Organização Católica Latino-americana e Caribenha de Comunicação), entidade da qual fui vice-presidente até fevereiro último. Foi uma experiência singular: instâncias da igreja local, nacional e continental, juntamente com uma organização continental de comunicadores, convocando para um diálogo comum e buscando uma contribuição conjunta para uma outra sociedade que se acredita possível. E desde a comunicação, entendida menos como mídias e mais como políticas e processos.
A época do ano, certamente, não foi propícia para um evento deste tipo. Se foram de grande importância e significado as palestras, seminários, oficinas, exposição de artes, shows e tudo o que o Mutirão apresentou como oportunidades, foi relativamente pobre a presença de público, tanto nas atividades acadêmicas, quanto nas artísticas e culturais.
IHU On-Line - Um dos objetivos do mutirão era debater a questão da cultura solidária. Quais as principais reflexões sobre uma nova a cidadania comunicacional foram realizadas durante o evento?
Attilio Hartmann - A teimosa e reiterada afirmação da necessidade de se criarem condições para uma cultura solidária não foi tema, apenas, de um ou outro seminário, mas perpassou transversalmente todas as atividades do Mutirão.
Neste sentido, o Mutirão pensa ter contribuído para o que se pode chamar "cidadania comunicacional", construída a partir de uma geral convicção, consciente ou inconsciente: ou a solidariedade se torna o novo nome das relações entre as pessoas, na sociedade e entre os povos, ou o nosso habitat, o planeta Terra e, claro, a sociedade humana, não tem futuro. Assim, a utopia da globalização da solidariedade viveu mais um round e num meio onde nem sempre se reflete seriamente este tema.
É sabido que uma globalização sem solidariedade afeta, negativamente, os setores mais pobres. Já não se trata, simplesmente, do fenômeno da exploração e da opressão, mas de algo novo: a exclusão social. Com ela fica afetada a própria raiz da pertença à sociedade na qual se vive, pois a pessoa excluída já não está abaixo, na periferia, mas está fora.
Os excluídos não são somente "explorados", mas "sobrantes" e, por isso, "descartáveis". Diante desta forma de globalização, o Mutirão quis contribuir para uma globalização diferente que esteja marcada pela solidariedade, pela justiça e pelo respeito aos direitos humanos.
IHU On-Line - O Pe. Marcelino Sivinski nos disse, ainda no ano passado, que esse Mutirão da Comunicação América Latina e Caribe não seria tachado de primeiro por não saber se ele teria continuidade no sentido de reunir tantos países num só evento. O que o senhor pode nos dizer nesse sentido? O Mutirão continuará sendo latino-americano?
Attilio Hartmann - O Mutirão se apresenta mais como processo do que como evento, encontro, seminário. Então, para dar continuidade a este processo, o site do mutirão (www.muticom.org) continuará ativo como espaço/lugar da construção de pessoas e sociedades sempre mais solidárias, de uma cultura solidária.
Então, a proposta que se está discutinda é: nos próximos anos realizar encontros nacionais e, depois de três ou quatro anos, um novo mutirão continental. No Brasil, o próximo Mutirão já tem data e local definidos: julho de 2011, na PUC do Rio de Janeiro.
IHU On-Line - Durante a segunda conferência deste Mutirão da Comunicação, houve uma reflexão sobre as diferentes práticas de comunicação que existem, sejam elas populares ou feitas nos centros de pesquisa. Como isto está contribuindo para que tenhamos uma outra ideia de comunicação?
Attilio Hartmann - Comunicação não é mais "coisa de jornalista". E o Mutirão quis exatamente contribuir para este novo conceito e prática de comunicação, especialmente dentro da instâncias eclesiais. Comunicação é processo, é políticas, é pesquisa, é diálogo e é, também, mídias. Assim, diante do avanço espetacular das novas tecnologias da informação e da comunicação, o desenvolvimento de novos códigos e linguagens e a importância, cada vez mais valorizada, dos espaços de diálogo e debate, a comunicação se converteu em um elemento fundamental no processo de mudança de mentalidades. A comunicação, livre, democrática, participativa é garantia para a governabilidade, fator de entendimento e de respeito entre as pessoas, instrumento para expor propostas, partilhar conhecimentos, apresentar dúvidas, aprender e ensinar. Numa palavra, a comunicação se converte na marca característica de cidadania, do ser humano e de todo o espaço democrático e respeitoso dos demais.
Por isso, é extremamente importante que os profissionais da comunicação, as lideranças sociais, políticas e comunitárias, que têm a responsabilidade de promover uma nova cultura, a cultura da solidariedade, analisem estes novos desafios e construam coletivamente propostas que facilitem uma comunicação capaz de ajudar a construir sociedades mais democráticas e, se mais democráticas, mais justas e, se mais justas, mais humanas para todos. Este é o desafio para todas as formas de comunicação, desde as modestas mídias populares até as grandes redes nacionais e internacionais. E aqui ganham maior importância os centros de pesquisa, como espaço/lugar para sistematizar a comunicação para que já não seja apenas uma comunicação de consumo, mas uma comunicação de sentido.
IHU On-Line - Como o senhor avalia a confluência entre o Evangelho e a Comunicação nos debates realizados durante este Mutirão da Comunicação?
Attilio Hartmann - Embora a dimensão de uma proposta evangelizadora com sentido para a sociedade atual estivesse presente, como pano de fundo, em todas as colocações e debates, aconteceram seminários específicos, coordenadores por conhecidos teólogos, onde se debateu particularmente uma outra evangelização possível, que responda às grandes preocupações do homem e da mulher deste tempo.
O que se pôde perceber é que há um imenso desejo de uma evangelização inculturada que não calque a catequese tanto na instituição eclesial, em normas, leis e códigos, mas busque sempre mais um embasamento bíblico e teológico, focalizado no Deus da Esperança, no Deus comprometido com a humanidade, no Deus que, em Jesus, se identifica com os pobres e faz do seu olhar o lugar desde onde é preciso construir um outro mundo possível, solidário, justo, fraterno.
Talvez seja este, exatamente, o maior desafio que se apresenta para a comunicação, os comunicadores e para todos os homens e mulheres de boa vontade: numa realidade onde as mídias se transformaram num negócio, visando somente o lucro, fazer da comunicação e das mídias, sejam elas quais forem, um verdadeiro, honesto e democrático serviço à sociedade. E este desafio deve encontrar nos meios de comunicação da igreja seu referencial, seu lugar profético de realização.
IHU On-Line - E, por fim, que sociedade latino-americana está surgindo a partir dos atuais processos de comunicação?
Attilio Hartmann - Sou visionário e utópico assumido. Por isso, creio que há uma nova sociedade latino-americana em gestação, que sofre em dores de parto de diferente ordem, mas que busca, lentamente, talvez, mas passo a passo e processualmente, transformar-se na pátria grande sonhada por libertadores de ontem e de hoje. E isso foi possível sentir durante a realização do Mutirão de Comunicação América Latina e Caribe, evento que marca a história da comunicação do nosso continente.
* Instituto Humanitas Unisinos