O Fórum Social Mundial e as missões jesuíticas

Antonio Cechin

Porto Alegre é a cidade referencial do Fórum Social Mundial porque foi aqui que ele começou no ano 2000 e foi aqui que foram realizados três. Neste ano de 2010, a fim de comemorar os 10 anos do início dessas grandes concentrações de caráter mundial, o Fórum é de menor abrangência pois de caráter quase exclusivamente local, em preparação do mundial na cidade de Dakar, na África, em 2011. Além disso, este de 2010 não ficou circunscrito a Porto Alegre mas espraiou-se pelos municípios da região metropolitana.

Nada neste mundo acontece por acaso. Os fatos da história são concatenados entre si porque, por trás deles há uma mão invisível a estabelecer relações, à primeira vista imperceptíveis. Neste mesmo ano de 2010 comemoramos também os 400 anos do início das Missões Jesuíticas do Paraguai que abrangiam toda a região do cone sul do continente. Aqui no Rio Grande do Sul, as Missões criaram sete prósperas cidades que denominamos os Sete Povos das Missões.

Por ocasião do 2º Fórum Social Mundial - ano de 2002 - o escritor riograndense Alcy Cheuíche, no jornal Zero Hora, lembrava que

"Porto Alegre, mais de um século antes da chegada dos casais açorianos, foi parada obrigatória dos mercadores de escravos que desciam o rio Jacuí em canoas abarrotadas de índios prisioneiros. Aqui, em porto improvisado na embocadura do Arroio Dilúvio, os guarani eram transferidos para os veleiros que desciam pela Lagoa dos Patos até o mar. Pela costa eram levados para os canaviais de São Vicente, onde morriam aos milhares de gripe, varíola, violência e desnutrição.

O famoso bandeirante Raposo Tavares, assassino confesso de mais de 100 mil guarani, responsável pela destruição das primeiras aldeias de índios no Paraná e no Rio Grande do Sul, deixou um documento escrito em que afirma que "índio não tem alma". Pois esses índios sem alma, a partir da batalha de Mbororé, em 1641, quando derrotaram e afugentaram para sempre os bandeirantes, construíram a mais socialista de todas as comunidades religiosas universais. E isso não é frase minha e sim de Voltaire, um dos maiores críticos da Igreja no século XVIII, que considerou as nossas Missões "um véritable triomphe de l'Humanité" (um verdadeiro triunfo da Humanidade).

Durante mais de cem anos, os 33 Povos das Missões, graças ao trabalho dos jesuítas espanhóis, portugueses, holandeses, franceses, alemães, italianos, austríacos, húngaros, abrigaram uma população de 250 mil guarani, vivendo em completa liberdade. Esses índios edificaram igrejas, escolas, creches, hospitais, além de suas próprias casas, talhando a pedra e a madeira com habilidade. Aprenderam a fabricar violinos e outros instrumentos musicais e a tocá-los com extrema facilidade e talento. Suas estátuas barrocas até hoje percorrem o mundo, sendo que uma delas, aqui no museu Júlio de Castilhos, retrata a Virgem Maria com traços guarani. Os 2 milhões de cabeças de gado dos Sete Povos, abandonados pelos índios depois do massacre de Caiboaté - ano de 1756 - formaram a base da nossa economia pecuária, até hoje um orgulho dos riograndenses. É preciso dizer mais?"

E por que as Missões Jesuíticas do passado deste garrão do Brasil, não transparecem no Fórum Social Mundial, já em sua edição que ultrapassa um dígito, considerado como a ferramenta máxima das esquerdas no mundo de hoje? Até para salvar o Planeta doente, com seus imperialismos, frutos temporões e ao mesmo tempo serôdios do sistema capitalista cambaleante mas ainda com força suficiente para acabar com a espécie humana na face da Terra, não se deveria procurar na história algum referencial válido?

Toda a reflexão desenvolvida no Fórum em realização, gira em torno de "um novo mundo que é possível, se a gente quiser" e por que, essa reflexão não se transmuda em peregrinação ou turismo religioso-social aos lugares históricos da Região Missioneira em que, quatro séculos atrás, foi realizada a grande experiência da Republica "Comunista" Cristã dos Guarani? Por que não se transmuda, por exemplo, em inauguração de uma estátua ao maior líder indígena São Sepé Tiaraju, "o Facho de Luz" que, de peito aberto, ladeado de 1.500 companheiros, lutou contra os dois maiores impérios do mundo de então, para defender sua Terra-Sem-Males com sua economia eminentemente solidária e ecologicamente correta?

No artigo de Cheuíche citado acima, o escritor assim termina: "Os organizadores do Fórum Social Mundial poderiam revelar Sepé Tiaraju ao mundo, como os mexicanos fizeram com Cuautemoc. Se não, o povo vai acabar lapidando essa estátua com as próprias mãos."

A única explicação plausível desse estado de coisas, é a nossa incúria de riograndenses. É o desconhecimento da nossa história, tanto por parte da sociedade religiosa quanto da sociedade civil. Aqui cabe a pergunta: Em que nível se estuda a história do povo guarani? No primário? No secundário? No Superior?

Além do desconhecimento, outro fator importante, a nosso ver, é o deslocamento acontecido em nosso tradicionalismo de raiz, que partia da saga do povo guarani, consagrada pelo único exemplar de gênero épico da literatura brasileira que é o poema Uraguai de Basílio da Gama, exaltada por escritores como Érico Verissimo e Manoelito de Ornellas, cantada pelos poetas e payadores missioneiros como Pedro Ortaça e Noel Guarani, para o fato sem nenhuma significação da "revolução farroupilha" que na realidade foi guerra entre fazendeiros, em que o povo nada tinha a ver.

A grande esperança é que nossas universidades comecem a abraçar, por ocasião do ano quatrocentão que estamos iniciando, a causa do povo guarani e das origens do Rio Grande.

* Antonio Cechin é irmão marista, miltante dos movimentos sociais e autor do livro  Empoderamento Popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.

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