O discurso de Francisco na FAO

O Papa havia visitado a FAO em 2014. Agora, retornou para participar do Dia Mundial da Alimentação, dedicado nesta ocasião ao tema: Mudar o futuro da migração.

Por Iacopo Scaramuzzi

“É claro que as guerras e as mudanças climáticas provocam a fome, então, evitemos apresentá-la como uma doença incurável”. O Papa Francisco visitou a sede da FAO (Food and Agriculture Organization da ONU) e, em um longo discurso em espanhol, solicitou uma melhor distribuição de alimentos no mundo, destacando que “reduzir é fácil, compartilhar, ao contrário, implica uma conversão, e isto é exigente”. Uma alfinetada implícita do Papa em Donald Trump, a respeito do acordo do clima de Paris, do qual, “infelizmente, alguns estão se distanciando”, e uma exortação a “boa vontade e diálogo para frear os conflitos e um compromisso total em favor de um desarmamento gradual e sistemático”. Um forte chamado a favor das pessoas que migram fugindo da fome: “Não poderão ser detidas por barreiras físicas, econômicas, legislativas, ideológicas”, disse Francisco, que pediu à diplomacia não “entrincheirar-se por trás de sofismas linguísticos que não honram a diplomacia, reduzindo-a de “arte do possível” a um exercício estéril para justificar os egoísmos e a inatividade”.

papanafao1Apoiando o pacto mundial promovido pela ONU para uma migração segura, regular e ordenada, o Papa concedeu à sede romana da FAO uma estátua do pequeno refugiado síria Aylan, que morreu em uma praia sem poder concluir sua viagem à Europa. “Seria exagerado – perguntou-se – introduzir na linguagem da cooperação internacional a categoria do amor, conjugada como gratuidade, igualdade de tratamento, solidariedade, cultura do dom, fraternidade, misericórdia?”.

“É claro que as guerras e as mudanças climáticas provocam a fome, então, evitemos apresentá-la como uma doença incurável”, disse Francisco, acusando as “especulações” sobre os recursos alimentares, que “favorecem os conflitos e o esbanjamento” e fazem com que aumente “o número dos últimos da terra que buscam um futuro distante de seus territórios de origem. Diante desta situação podemos e devemos mudar o rumo. Frente ao aumento da demanda de alimentos, é preciso que os frutos da terra estejam à disposição de todos. Para alguns, bastaria diminuir o número de bocas a ser alimentadas e, desta maneira, se resolveria o problema; mas esta é uma falsa solução, caso se considere o nível de desperdício de comida e os modelos de consumo que dissipam tantos recursos. Reduzir é fácil, compartilhar, ao contrário, implica uma conversão, e isto é exigente”.

Após ter mencionado a decisão de se criar a FAO, no dia 16 de outubro de 1945, o Papa afirmou que é necessário renovar, na atualidade, esse compromisso que lhe conferiu o nascimento, porque “a realidade atual reivindica uma maior responsabilidade em todos os níveis, não só para garantir a produção necessária ou a equitativa distribuição dos frutos da terra - isto deveria se dar por certo -, mas sobretudo para garantir o direito de todo ser humano a se alimentar segundo suas próprias necessidades, fazendo parte, além disso, das decisões que o afetam e da realização das próprias aspirações, sem ter que se separar de seus próximos queridos”. E mesmo que agora a cooperação esteja “cada vez mais condicionada a compromissos parciais, chegando-se inclusive a limitar as ajudas nas emergências”, é muito urgente “encontrar novos caminhos para transformar as possibilidades de que dispomos em uma garantia que permita a cada pessoa encarar o futuro com fundada confiança, e não só com alguma ilusão”.

Assim, o cenário “das relações internacionais manifesta uma crescente capacidade de dar respostas às expectativas da família humana, também com a contribuição da ciência e da técnica, que, estudando os problemas, propõem soluções adequadas. No entanto, estas novas conquistas não conseguem eliminar a exclusão de grande parte da população mundial: quantas são as vítimas da desnutrição, das guerras, das mudanças climáticas? Quantos carecem de trabalho ou dos bens básicos e se veem obrigados a deixar sua terra, expondo-se a muitas e terríveis formas de exploração?”.

“A relação entre a fome e as migrações – afirmou duramente o Papa – só pode ser enfrentada se vamos à raiz do problema. A este respeito, os estudos realizados pelas Nações Unidas, como tantos outros realizados por Organizações da sociedade civil, concordam em que são dois os principais obstáculos que é preciso superar: os conflitos e as mudanças climáticas”.

“Como é possível superar os conflitos?”, perguntou Francisco. Antes de tudo, referiu-se, por exemplo, a “populações martirizadas por guerras que já duram dezenas de anos e que poderiam ter sido evitadas ou ao menos detidas. No entanto, propagam efeitos tão desastrosos e cruéis como a insegurança alimentar e o deslocamento forçado de pessoas. Necessita-se – indicou Jorge Mario Bergoglio – boa vontade e diálogo para frear os conflitos e um compromisso total em favor de um desarmamento gradual e sistemático, previsto pela Carta das Nações Unidas, assim como para remediar a funesta praga do tráfico de armas. O que adianta denunciar que por causa dos conflitos milhões de pessoas são vítimas da fome e da desnutrição, se não se atua eficazmente em prol da paz e do desarmamento?”.

Em relação às mudanças climáticas, afirmou o Papa, “vemos suas consequências todos os dias. Graças aos conhecimentos científicos, sabemos como os problemas devem ser enfrentados; e a comunidade internacional também foi elaborando os instrumentos jurídicos necessários, como, por exemplo, o Acordo de Paris, do qual, infelizmente, alguns estão se distanciando”, disse o Papa se referindo evidentemente ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. “No entanto, reaparece a negligência para com os delicados equilíbrios dos ecossistemas, a presunção de manipular e controlar os recursos limitados do planeta, a avidez do lucro. Portanto, é necessário se esforçar em favor de um consenso concreto e prático, caso se deseje evitar os efeitos mais trágicos, que continuarão recaindo sobre as pessoas mais pobres e indefesas. Somos chamados a propor uma mudança nos estilos de vida, no uso dos recursos, nos critérios de produção, até no consumo, que em relação aos alimentos apresenta um aumento das perdas e o desperdício. Não podemos nos conformar em dizer que ‘alguém irá agir’”.

“Por isso - continuou -, faço a mim mesmo, e também a vocês, uma pergunta: Seria exagerado introduzir na linguagem da cooperação internacional a categoria do amor, conjugada como gratuidade, igualdade de tratamento, solidariedade, cultura do dom, fraternidade, misericórdia? Estas palavras expressam, efetivamente, o conteúdo prático do termo ‘humanitário’, tão utilizado na atividade internacional. Amar aos irmãos, tomando a iniciativa, sem esperar ser correspondidos, é o princípio evangélico que também encontra expressão em muitas culturas e religiões, convertendo-se em princípio de humanidade na linguagem das relações internacionais. É imperativo que a diplomacia e as instituições multilaterais alimentem e organizem esta capacidade de amar, porque é a via mestre para garantir não só a segurança alimentar, mas também a segurança humana em seu aspecto global. Não podemos atuar só se os demais atuam, nem nos limitar a ter piedade, porque a piedade se limita às ajudas de emergência, ao passo que o amor inspira a justiça e é essencial para realizar uma ordem social justa entre realidades distintas que aspiram o encontro recíproco. Amar significa contribuir para que cada país aumente a produção e chegue a uma autossuficiência alimentar. Amar se traduz em pensar em novos modelos de desenvolvimento e de consumo, e em adotar políticas que não piorem a situação das populações menos avançadas ou sua dependência externa. Amar significa não continuar dividindo a família humana entre os que gozam do supérfluo e os que carecem do necessário”.

A comunidade internacional, explicou Francisco, tem consciência sobre o perigo das armas de destruição massiva, mas “somos igualmente conscientes dos efeitos da pobreza e da exclusão?”, perguntou. “Como deter as pessoas dispostas a arriscar tudo, a gerações inteiras que podem desaparecer porque carecem do pão cotidiano, ou são vítimas da violência ou das mudanças climáticas? Deslocam-se para onde veem uma luz ou percebem uma esperança de vida. Não poderão ser detidas – afirmou – por barreiras físicas, econômicas, legislativas, ideológicas. Só uma aplicação coerente do princípio de humanidade pode conseguir isso. Ao contrário, vemos que se diminui a ajuda pública ao desenvolvimento e se limita a atividade das Instituições multilaterais, ao passo que se recorre a acordos bilaterais que subordinam a cooperação ao cumprimento de agendas e alianças particulares ou, simplesmente, a uma momentânea tranquilidade. Pelo contrário, a gestão da mobilidade humana requer uma ação intergovernamental coordenada e sistemática, de acordo com as normas internacionais existentes e impregnada de amor e inteligência. Seu objetivo é um encontro de povos que enriqueça a todos e gere união e diálogo, não exclusão e vulnerabilidade”.

“Aqui – acrescentou com ênfase o Pontífice –, permitam que eu me una ao debate sobre a vulnerabilidade, que causa divisão em nível internacional quando se fala de imigrantes. Vulnerável é o que está em situação de inferioridade e não pode se defender, não tem meios, ou seja, sofre uma exclusão. E está obrigado isso pela violência, pelas situações naturais ou, ainda pior, pela indiferença, a intolerância e inclusive pelo ódio. Diante desta situação, é justo identificar as causas para atuar com a competência necessária. Contudo, não é aceitável que para evitar o compromisso, se busque entrincheirar por trás de sofismas linguísticos que não honram a diplomacia, reduzindo-a de “arte do possível” a um exercício estéril para justificar os egoísmos e a inatividade. O desejável é que tudo isto seja levado em conta no momento de se elaborar o ‘Pacto mundial para uma migração segura, regular e ordenada’, que atualmente está sendo realizado no seio das Nações Unidas.

“Ouçamos o grito de tantos irmãos nossos marginalizados e excluídos: ‘Tenho fome, sou estrangeiro, estou nu, doente, recluso em um campo de refugiados’”, disse o Papa. “É um pedido de justiça, não uma súplica ou um chamado de emergência. É necessário que em todos os níveis se dialogue de maneira ampla e sincera, para que sejam encontradas as melhores soluções e se amadureça uma nova relação entre os diversos atores do cenário internacional, caracterizada pela responsabilidade recíproca, a solidariedade e a comunhão. O jugo da miséria gerado pelos deslocamentos muitas vezes trágicos dos emigrantes pode ser eliminado mediante uma prevenção consistente em projetos de desenvolvimento que criem trabalho e capacidade de resposta às crises ambientais. É verdade, a prevenção custa muito menos que os efeitos provocados pela degradação das terras ou a contaminação das águas, flagelos que açoitam as principais regiões do planeta, onde a pobreza é a única lei, as doenças aumentam e a expectativa de vida diminui”.

O Papa concluiu expressando seu desejo (que gerou uma aclamação entre os que escutavam seu discurso) de que “cada um descubra, no silêncio da própria fé ou das próprias convicções, as motivações, os princípios e as contribuições para infundir na FAO, e nas demais Instituições intergovernamentais, o valor de melhorar e trabalhar incansavelmente pelo bem da família humana”.

O Papa havia visitado a FAO em 2014. Agora, retornou para participar do Dia Mundial da Alimentação, dedicado nesta ocasião ao tema: Mudar o futuro da migração. Investir em segurança alimentar e no desenvolvimento rural. Francisco chegou pouco antes das 9h, foi recebido pelo diretor geral da FAO, o brasileiro José Graziano da Silva, e voltou ao Vaticano às 10h15. Jorge Mario Bergoglio concedeu à sede romana da FAO uma escultura de mármore, do artista italiano Luigi Prevedel, que retrata Aylan, o pequeno refugiado sírio que se afogou na praia de Bodrum, na Turquia, em outubro de 2015, imagem símbolo da tragédia das migrações.

Fonte: Vatican Insider

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