O Agro é Tech?

O Agro­ne­gócio trans­formou a velha agro­pe­cuária la­ti­fun­diária do sis­tema pro­du­tivo de agre­gação numa agro­pe­cuária la­ti­fun­diária de tec­no­lo­gias mo­dernas e tra­balho as­sa­la­riado do sis­tema ca­pi­ta­lista.

Por Wladimir Pomar

A pos­si­bi­li­dade de uma ampla con­ci­li­ação de classes para travar uma guerra comum contra a de­si­gual­dade so­cial, a po­breza e a mi­séria con­duziu, em 2002, a um go­verno de co­a­lizão po­lí­tica, tendo Lula como pre­si­dente. Muita gente acre­ditou que, com isso, a luta de classes es­taria en­ga­ve­tada por um longo pe­ríodo. Afinal, se­tores con­si­de­rá­veis da bur­guesia ha­viam apoiado a eleição de Lula.

Apesar desse con­texto apa­ren­te­mente fa­vo­rável, que já havia le­vado à cri­ação, desde 1985, de um Plano Na­ci­onal de Re­forma Agrária e, em 2003, à cri­ação do Mi­nis­tério de De­sen­vol­vi­mento Agrário, a re­forma agrária pouco andou. Em con­tra­par­tida, o Agro­ne­gócio man­teve-se à frente do Mi­nis­tério da Agri­cul­tura e ga­rantiu os pol­pudos fi­nan­ci­a­mentos es­ta­tais às suas sa­fras anuais (5,4 bi­lhões de reais, em 2003, e 30 bi­lhões de reais, em 2016, ainda sob o go­verno Dilma).

reformaagrariaviolenciaEs­trei­ta­mente li­gado ao sis­tema fi­nan­ceiro in­ter­na­ci­onal das bolsas de com­mo­di­ties, entre 2000 e 2015 o Agro­ne­gócio elevou a pro­dução de grãos (prin­ci­pal­mente soja e milho) em mais de 100%, a de açúcar em 120%, a de etanol em 160%, a de frangos em 116%, a de carne bo­vina em 57%, e a de café em 45%. Com isso, a par­ti­ci­pação do Agro­ne­gócio no PIB bra­si­leiro se elevou mais de 4% a cada ano. O que o tornou o maior res­pon­sável pelos su­pe­rá­vits no co­mércio ex­terno, apro­pri­ando-se de mais de 42% da renda do país, e con­for­mando a mais forte ban­cada po­lí­tica no Con­gresso Na­ci­onal.

Tudo isso in­duziu o Agro­ne­gócio, em pu­bli­ci­dades re­centes, a apre­sentar-se como a “prin­cipal in­dús­tria” do país - o Agro Tech. Ele não seria apenas a sal­vação da la­voura. Es­taria fa­dado a re­a­lizar o velho sonho agra­rista de trans­formar o Brasil no pro­vedor mun­dial de ali­mentos, em­bora re­du­zindo sua lista às poucas es­pé­cies lis­tadas acima.

É ver­dade que, em pouco mais de 40 anos, o Agro­ne­gócio, ou o Agro Tech, trans­formou, com base nos fi­nan­ci­a­mentos es­ta­tais, a velha agro­pe­cuária la­ti­fun­diária do sis­tema pro­du­tivo de agre­gação numa agro­pe­cuária la­ti­fun­diária de tec­no­lo­gias mo­dernas e tra­balho as­sa­la­riado do sis­tema ca­pi­ta­lista. O que acres­centou, aos nú­meros lis­tados acima, dados pre­o­cu­pantes. A po­pu­lação rural foi re­du­zida, de 67% da po­pu­lação total, nos anos 1960, para 16% na atu­a­li­dade. As 400 mil em­presas Agro­Tech ocupam mais de 45% das terras, en­quanto 5 mi­lhões de pe­quenos e mé­dios agri­cul­tores ocupam menos de 3%.

Os se­tores agrí­cola, pe­cuário e agroin­dus­trial da fração bur­guesa do Agro Tech mantêm ín­timas re­la­ções com o sis­tema fi­nan­ceiro in­ter­na­ci­onal que do­mina o co­mércio de com­mo­di­ties agrí­colas, assim como com os sis­temas in­dus­triais, prin­ci­pal­mente in­ter­na­ci­o­nais, de trans­portes, equi­pa­mentos e de­fen­sivos quí­micos. Com base nisso, mar­cham ce­le­re­mente para elevar ainda mais o uso de novas tec­no­lo­gias. O que está re­du­zindo ao mí­nimo o uso de força de tra­balho as­sa­la­riado, numa média de 3,5% ao ano.

Pa­ra­le­la­mente, esses se­tores do Agro Tech operam para am­pliar a área que já ocupam às custas das terras in­dí­genas e qui­lom­bolas e das terras dos pe­quenos e mé­dios agri­cul­tores, seja através da ex­pulsão vi­o­lenta, de man­dados ju­di­ciais, ou através da compra ou do ar­ren­da­mento. Não pa­gando, ou pa­gando apenas um Im­posto Ter­ri­to­rial ri­dí­culo, o Agro Tech também se apro­pria da maior parte da renda fun­diária que per­tence (ou de­veria per­tencer) à so­ci­e­dade bra­si­leira.

O Agro­ne­gócio também tem des­car­re­gado sobre os om­bros da so­ci­e­dade bra­si­leira di­versos ou­tros custos, a co­meçar por aqueles re­la­ci­o­nados com a in­su­fi­ci­ente so­be­rania ali­mentar do país, hoje to­tal­mente sob a res­pon­sa­bi­li­dade da fraca eco­nomia agrí­cola fa­mi­liar. O mesmo ocorre com os custos da des­truição am­bi­ental dos cer­rados, das matas ci­li­ares, dos cor­re­dores flo­res­tais de trân­sito das es­pé­cies ani­mais, do uso abu­sivo dos agro­tó­xicos, da pri­ma­ri­zação cres­cente da eco­nomia na­ci­onal e da des­na­ci­o­na­li­zação do país, agora in­cluindo o pro­jeto de li­berar a venda de terras a es­tran­geiros.

O Agro Tech, em sua bela pro­pa­ganda te­le­vi­siva, não trata desses as­pectos, mesmo porque não fica bem. O im­por­tante é di­vulgar que ele, como in­dús­tria, pre­ten­sa­mente se tornou a base da eco­nomia bra­si­leira. No en­tanto, bastou uma ope­ração es­pa­lha­fa­tosa da Po­lícia Fe­deral para co­locar a nu a mesma cor­rupção en­dê­mica que as­sola as grandes em­presas da eco­nomia bra­si­leira para sus­tentar a con­for­mação de mo­no­pó­lios e oli­go­pó­lios.

Para pi­orar esse quadro, ao anun­ciar haver de­mi­tido su­ma­ri­a­mente os fun­ci­o­ná­rios pú­blicos acu­sados de co­ni­vência com as ir­re­gu­la­ri­dades pra­ti­cadas por fri­go­rí­ficos, su­pondo estar pres­tando um ser­viço ao po­de­roso Agro Tech, o go­verno gol­pista chan­celou as acu­sa­ções da Po­lícia Fe­deral. Com isso, co­locou todo o setor sob sus­peita, fez des­pencar as ex­por­ta­ções, e co­locou em xeque o ver­da­deiro papel mo­no­po­lista do agro­ne­gócio, que vende carne a 4,04 dó­lares por quilo, no mer­cado in­ter­na­ci­onal, en­quanto impõe ao com­prador do mer­cado in­terno um custo de 9 dó­lares ou mais.

Por mais que, a se­guir, o go­verno tenha ten­tado re­duzir o es­trago, afir­mando a in­sig­ni­fi­cância dos fri­go­rí­ficos in­ves­ti­gados e as pos­sí­veis tra­pa­lhadas dos po­li­ciais fe­de­rais na aná­lise dos casos de ins­peção sa­ni­tária, o que o mer­cado in­ter­na­ci­onal im­por­tador de­duziu é que, se há cor­rupção nas áreas su­pe­ri­ores de ins­peção sa­ni­tária, isto sig­ni­fica com cer­teza que há pro­blemas muito mais am­plos e dis­se­mi­nados de sa­ni­dade nas carnes e de­ri­vados. Assim, o pró­prio go­verno, em sua in­sen­satez de pro­teger o Agro Tech, for­neceu os prin­ci­pais mo­tivos para as de­ci­sões de sus­pensão tem­po­rária das im­por­ta­ções pelos grandes com­pra­dores das carnes bra­si­leiras.

De qual­quer modo, a emer­gência desses pro­blemas co­loca a so­ci­e­dade bra­si­leira di­ante da ne­ces­si­dade de re­dis­cutir o papel da agro­pe­cuária e da in­dús­tria na eco­nomia bra­si­leira, assim como o papel das di­versas formas que a agro­pe­cuária deve as­sumir para ga­rantir a so­be­rania ali­mentar do con­junto da po­pu­lação bra­si­leira e para con­tri­buir para um de­sen­vol­vi­mento econô­mico e so­cial sus­ten­tável e mais equi­li­brado.

De ime­diato co­loca a ne­ces­si­dade de rever a re­a­li­dade do Brasil como o país de maior con­cen­tração de terras do mundo. Não é mais acei­tável per­mitir a ex­pansão ter­ri­to­rial ili­mi­tada do Agro­ne­gócio. Nem deixar por conta do pró­prio Agro Tech a me­dição de sua su­posta pro­du­ti­vi­dade e o pa­ga­mento de um im­posto ter­ri­to­rial que não cor­res­ponda à renda fun­diária re­al­mente ge­rada. Ou per­mitir a trans­gressão con­tínua das leis tra­ba­lhistas, in­cluindo o uso do tra­balho es­cravo, assim como das exi­gên­cias agro­ló­gicas e sa­ni­tá­rias. Já passou dos li­mites o des­prezo do Agro­ne­gócio à ne­ces­si­dade de re­verter os pro­blemas eco­ló­gicos que criou em seu cres­ci­mento de­sor­de­nado.

Por outro lado, o Agro Tech, como ex­por­tador de com­mo­di­ties agrí­colas, pode con­tri­buir para o de­sen­vol­vi­mento do país se os re­sul­tados da ba­lança co­mer­cial das com­mo­di­ties forem di­re­ci­o­nados para im­por­ta­ções de bens de pro­dução de novas e altas tec­no­lo­gias, prin­ci­pal­mente para a rein­dus­tri­a­li­zação do país, in­cluindo in­dús­trias de equi­pa­mentos agro­pe­cuá­rios e pro­dutos quí­micos.

Pa­ra­le­la­mente, é ne­ces­sário rever o pro­grama de re­forma agrária, não só as­sen­tando ra­pi­da­mente os cerca de 2 a 3 mi­lhões de la­vra­dores sem-terra, mas também am­pli­ando as terras dos mi­ni­fun­diá­rios e re­for­çando as uni­dades agrí­colas fa­mi­li­ares e co­o­pe­radas como os prin­ci­pais su­portes pro­du­tivos dos ali­mentos de con­sumo do­més­tico. O que in­clui a am­pli­ação do cré­dito agrí­cola, da as­sis­tência téc­nica e da ga­rantia de compra da pro­dução desses se­tores.

Atu­al­mente, as uni­dades agrí­colas fa­mi­li­ares e co­o­pe­radas têm cres­cente di­fi­cul­dade em en­frentar a con­cor­rência das em­presas Agro Tech, que avançam sobre todas as terras e ditam preços de mo­no­pólio. Não é crível que, por pro­blemas de preços, pro­dutos ali­men­tares sejam en­ter­rados como adubo ao invés de serem di­re­ci­o­nados para con­sumo so­cial.

Por outro lado, é im­pe­rioso proibir a venda de terras agro­pas­toris a em­presas es­tran­geiras e re­gular os pro­ce­di­mentos téc­nicos e ci­en­tí­ficos para o uso de agro­tó­xicos e trans­gê­nicos. A terra, em seu sen­tido amplo, é um bem na­ci­onal e so­cial e, a rigor, de­veria ser pro­pri­e­dade pú­blica, não pri­vada. Após mais de 500 anos de apos­sa­mento e apro­pri­ação pri­va­tista, a ten­ta­tiva do Agro­ne­gócio de des­na­ci­o­na­lizar o ter­ri­tório através da venda de al­guns mi­lhões de hec­tares para firmas es­tran­geiras re­co­loca a pos­si­bi­li­dade, mais tarde ou mais cedo, do solo não só con­ti­nuar na­ci­onal, mas também re­tornar à pro­pri­e­dade e à pro­dução so­cial, tendo por base a es­cala téc­nica al­can­çada no pro­cesso pro­du­tivo.

O que vai de­pender, em grande me­dida, da ali­ança so­cial e po­lí­tica que os pe­quenos e mé­dios pro­du­tores agrí­colas (in­cluindo os tra­ba­lha­dores sem-terra) es­ta­be­le­cerem com os as­sa­la­ri­ados agrí­colas e com os tra­ba­lha­dores e ca­madas po­pu­lares e mé­dias das ci­dades para en­frentar o pro­cesso de mo­no­po­li­zação e des­na­ci­o­na­li­zação ainda mais in­tenso pro­mo­vido pelo Agro Tech.

Fi­nal­mente, como com­ple­mento a tudo isso, o que teria feito o Par­tido da Mídia se ti­vesse sido um de­pu­tado pe­tista, não o atual mi­nistro gol­pista da Jus­tiça, Osmar Ser­ra­glio, que hou­vesse te­le­fo­nado para o Su­pe­rin­ten­dente do Mi­nis­tério da Agri­cul­tura no Pa­raná (tudo in­dica, chefe da qua­drilha de cor­rupção dos fri­go­rí­ficos), cha­mando-o de “grande chefe” e so­li­ci­tando in­ter­fe­rência para salvar um fri­go­rí­fico in­frator?

*Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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