Adital
"Não pensem que eu vim trazer paz à terra...!" (Mt 10,34).
Hoje, somos todos reféns daquilo que agrada às multidões. E nada agrada-lhes mais do que o discurso da "paz". Parece que, depois de três décadas de lutas, manifestações, punhos erguidos, discursos inflamados e palavras de ordem gritadas, a "turma" se cansou e procura agora profetas e sacerdotes(-cantores?) de "fala mansa" que prometem bonança e serenidade, de preferência sem ninguém ter que suar a camisa. "Felizes os mansos" (Mt 5,5) e - sobretudo - os sorridentes, pois o grande público irá escutá-los. Toda palavra mais grossa, discussão mais acalorada, qualquer dissenso ou polêmica são ojerizados; preza-se viver em um ambiente harmônico, tranqüilo e isento de perturbações. Se existem conflitos - e não há como negar sua existência, nem na sociedade, nem na Igreja - , há de se silenciar acerca deles, pois viver um conflito, ainda mais às vistas do público, seria hoje desastroso para a imagem de qualquer instituição ou comunidade. E é assim que mantemos - nos lares, nas igrejas, nas repartições - a fachada da unidade-unanimidade e da paz, varrendo os grandes problemas e conflitos debaixo do famigerado "tapete".
A uma espiritualidade cristã autêntica, porém, esta ânsia por "paz a qualquer preço" sempre pareceu hipócrita. Já a denunciava o profeta bíblico: "Do menor ao maior, são todos aproveitadores, do profeta ao sacerdote, todos enganadores. Sem responsabilidade querem curar a ferida do meu povo, dizendo apenas "Shalom! Shalom!", quando paz não existe!" (Jr 6,13-14). E o próprio Cristo, anunciado como "manso e humilde de coração" na nossa atual mentalidade eclesial, foi, na realidade, um grande polemizador das causas justas, que discutiu com juristas canônicos e sacerdotes, chamando-os de hipócritas, guias cegos e sepulcros caiados (Mt 23). Jesus pegou pesado com ricos ("Ai de vós!") e políticos ("Raposa"), mas também não costumava bajular as multidões que o escutavam ("geração má e adúltera!"). "Não vim trazer a paz, mas a espada", disse ele certa vez. Ou seja, veio para nos forçar a uma tomada de posição: ou a favor ou contra as prioridades do Reinado de Deus - e os seus preferidos.
Esta espiritualidade bíblico-evangélica só pode chocar a mentalidade cristã vigente. Repete-se, em todas as paróquias, o lema da Campanha da Fraternidade ad nauseam ("A paz é fruto da justiça"), mas não se encontra quem queira denunciar as tremendas injustiças e desigualdades que permeiam nosso convívio social brasileiro. Tomar partido? É complicado...! Ninguém quer "pegar (no) pesado", tudo deve ser "light" e facilmente digerível, senão os "fiéis" vão embora...
Dom Helder Camara, cujo centenário de nascimento (1909) comemoramos este ano, exercia-se na espiritualidade cristã autêntica e não fazia concessões ao "gosto" das multidões. No seu já célebre livro "Revolução dentro da Paz" (RJ 1968), o pastor-profeta dizia: "Trata-se de convencer os senhores de hoje a completar a abolição da escravatura, contribuindo, de modo decisivo, não para um amplo movimento filantrópico e assistencialista, mas para um autêntico movimento de promoção humana" (p.79). Sabia da inocuidade de certos discursos eclesiásticos em favor da paz e da justiça, quando desacompanhados de ações concretas no terreno sócio-político: "Se não creio na violência armada, também não chego à ingenuidade de pensar que bastam conselhos fraternos, apelos líricos, para que tombem estruturas sócio-econômicas, como ruíram os muros de Jericó" (p.37).
É esta espiritualidade mais profunda de Dom Helder que não só sabe dar pão aos pobres, mas que pergunta pelas causas da pobreza e que, por conseqüência, aceita ser "perseguida por causa da justiça" (Mt 5,10) que "O GRUPO", aqui em Fortaleza, está querendo relançar ao povo cristão, durante noite de conferência no Colégio Santo Tomás de Aquino, no decurso da SEMANA DOM HELDER CAMARA. A conferência, intitulada "Dom Helder e a espiritualidade do conflito", será proferida por um padre e velho amigo do falecido Dom, João Pubben, no dia 29 de setembro, às 19:00 h, no auditório daquela instituição de ensino. Vamos conferir. Está na hora de avançar para águas mais profundas...
* Teólogo católico e membro da recém-eleita coordenação arquidiocesana de CEBs, em Fortaleza, Ceará