A marcha continua

Egon Heck *

BR 163 - A estrada que corta o Mato Grosso do Sul e o Brasil de norte a sul está sendo palco de importante manifestação na marcha pela Terra, organizada pelos Movimentos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais Sem Terra com a participação dos movimentos sociais, dentre os quais os povos indígenas. O asfalto acostumado a ser pisado apenas por pesados e rápidos pneus, agora sente o cheiro de terra, das sandálias, tênis, sapatos e pés descalços, de centenas de trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra e representantes do povo Kaiowá Guarani,

É dada a largada da marcha

Depois da chegada e organização do inicio da marcha em Nova Alvorada, a 110 km de Campo Grande, chegou à hora de por o pé na estrada, Um pouco mais de 300 pessoas de mais de dez municípios do cone sul do Mato Grosso do Sul, começaram enfrentar o asfalto sob sol causticante. A mística de abertura expôs as contradições, a violência e as veias abertas dessa região da América latina marcada pelo latifúndio, monocultura, concentração da terra e das riquezas nas mãos do agronegócio e da agroindústria na região. O que no momento mais está impactando é a feroz implantação da indústria do etanol, para garantir tanques cheios, à custa de barrigas vazias.

Muito entusiasmo, palavras de ordem e disposição na marcha. Foi assim que se iniciou a V Marcha estadual. Outras foram feitas a partir do inicio da década de 90, quando um grupo de manifestantes sem terra e do movimento social, saíram em caminhada de Dourados até Campo Grande, percorrendo mais de 220 quilômetros. Ali sofreram forte repressão por parte das forças policiais a mando do então governador. Esperam que a dose de dor não se repita. Por outro lado sabe que não serão recebidos com flores por um governo que está claramente ao lado do agronegócio e contra a destinação da terra a quem nela queira trabalhar, e especialmente ao reconhecimento das terras indígenas e quilombolas.

Marcha abençoada

Os povos indígenas se integraram na marcha apenas no final do primeiro dia. Após uma noite sob os barracos improvisados numa chácara amiga, foi à hora do primeiro despertar dos lutadores e lutadoras. Não eram ainda quatro horas da madrugada. Os galos mal tinham cantado, anunciando a proximidade de mais um dia. Os Kaiowá Guarani, liderados pelo Nhanderu (líder religioso) Olimpio, foi quem puxou o ritual "hewasá" para abençoar as pessoas, animá-las e para ficar mais leve a caminhada. "Isso se repete, quando o corpo está triste e desanimado, é pra ele brincar e ficar alegre", explica o cacique. E pra isso acontecer não poderia ter sol quente sobre os caminhantes.

E marcha se pois a caminho. As placas indicavam uma velocidade máxima de 80 km por hora. Os caminhantes, se deslocavam a um pouco mais de 5km por hora. Faltavam poucos minutos para as cinco da manhã. Fomos encontrar o dia no caminho. Logo fomos sendo envolvidos por uma leve neblina. Agradável carícia. Depois de clarear o dia, aos poucos a neblina foi se transformando em fina e fria garoa. A preocupação era com o engrossar da garoa que poderia se transformar em sofrimento e gripe. Mas a marcha havia sido abençoada pelos Kaiowá Guarani. E o sol ficou escondido. O frio se transformou em energia para acelerar a marcha. Tudo era alegria. Melhor impossível. Em um pouco mais de duas horas já havíamos percorrido mais de 12 km. Hora do café à beira da estrada. Uma rápida parada de menos de meia hora, e pé na estrada novamente. Um pouco mais das 11 horas chegamos ao km 399 . Hora de encostar os corpos cansados embaixo das lonas pretas. Chegamos "na lona", alguns exaustos, outros mancando extenuados. Foi quando entrou em campo o time da massagem. Hora de esticar o corpo e jogar as pernas para cima. Mais de uma centena de caminhantes estavam visivelmente doloridos. Foi a constatação de que estávamos, em grande parte, fora de forma para enfrentar essa marcha forçada, de mais de 25 km em cinco horas. "Foi o frio que nos estimulou e agora estamos pagando o preço', comentou alguém da coordenação da marcha.

Na avaliação da tarde, dentre os pequenos problemas por estarmos marchando numa das rodovias federais de grande movimentação, principalmente de enormes e rápidas carretas. Quando passavam há mais se 100 km por hora eram só gente segurando os chapéu e boné. Mesmo assim de quando em quando alguns voavam. É a dura constatação de uma economia que roda velozmente pelas estradas, alimentada pela industria automobilística. Evidencia-se o alto preço, para não dizer o absurdo de uma economia que se movimenta e alimenta sob rodas.

Um forte vento e o frio vai chegando. Nosso barraco acomodado entre duas fileiras de eucaliptos é cruzado pelo vento provocando arrepios. E de noite o que poderia ser uma suave melodia se transforma em bateção de queixos. O jeito foi maximizar o calor humano para confrontar com os ventos gelados. E a noite foi se arrastando lentamente, entre tossidos e corpos doloridos. Porém a reunião da tarde trouxe alento. O dia seguinte será de estudo, debate e panfletagem no distrito de Anhanduí Quem vai marchar vai ser o ônibus, já carcomido pela idade, mas que quebra um galho danado.

Deus fez a terra para todos

Nos seus comentários, desde a chegada, o cacique Kaiowá Olimpio, não se cansa de repetir a razão que o trouxe até ali, lutar pela terra. Sua comunidade de Laranjeira Nhanderu se encontra novamente sob ameaça de despejo, "Deus fez a terra pra todos. Não só pros fazendeiros. Nóis Kaiowá Guarani precisamos ter nossa terra de volta. Viemos juntar com vocês sem terra, pra lutar juntos. Se caramujo que não tem perna anda tanto, por que nóis não vamos andar", complementa ele.

A delegação indígena trouxe a luta dos povos indígenas do Estado, especialmente pela terra. Os representantes, pertencem a duas comunidades em luta Kurusu Ambá e Laranjeira Nhanderu. Vieram com arcos, flexas e tacapes. Mas também vieram com maracá, takuara e indumentária ritual. Vieram para trazer à luta, a esperança, as bênçãos de Nhanderu, Deus de vida, de todos.

Se Deus fez a terra para todos, o que os indígenas não entendem é porque para os bois estão garantidos mais de 25 milhões de hectares, para aproximadamente 23 milhões de cabeças de gado, enquanto mais de 40 mil Kaiowá Guarani tem apenas um pouco mais de quarenta mil hectares de terra. Porque estão destinados mais de 3 milhões de hectares para a soja e se que chegar a 1 milhão e meio para a cana, enquanto os índios continuam confinados e submetidos a uma cruel violência diária.

O tatu, o ipê solitário e a natureza

Quando um tatu peba, distraído quase entrou na marcha, fez logo meia volta e foi fujindo para a capoeira, foi logo alcançado por um jovem que o ostentou como troféu. Logo começaram os comentários e opiniões variadas. Alguns já passaram a ver o bichinho como um bom caldo ou farrofa, ou assado. Mas outros passaram a gritar "solta, solta...ele é um bichinho importante na natureza". Prevaleceu clamor dos últimos. E em pouco tempo o tatu peba estava novamente livre, porém não sem antes ser alvo dos atentos fotógrafos em marcha.

Logo adiante um belo lobo guará estava estirado à beira da estrada. Não tivera a mesma sorte do tatu, pois os carros apressados tem preferência, condenando centenas de animais indefesos, ao atropelamento.

Mais uns quilômetros e surge ao lado da estrada um lindo pé de ipê amarelo. Sobrevivente solitário. A beleza foi sendo absorvida pelos olhares ávidos e atentos dos marchantes.

Tudo isso foi motivo para uma reflexão sobre nossa civilização destruidora da natureza e o sistema capitalista de acumulação de poder, privilégios, terra e a exclusão da grande maioria da população brasileira e regional. Também serviu para pensar na grande responsabilidade de se construir uma nova sociedade, com novas relações entre todos os seres vivos;

Hoje terceiro dia da marcha estamos em Anhanduí. Vamos refletir, debater, interagir com a população desse distrito, já no município de Campo Grande. Para amanhã, restabelecidos, animados e mais esclarecidos sobre a atual conjuntura, seguirmos nossa marcha pela terra.

Foi uma forma muito digna de muitos pais edificarem suas vidas, em marcha, nesse dias em que se celebra o dia dos pais em que a maior festa fica por conta do comercio, do mercado!

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