Negócios da China e a fome

Antonio Alves de Almeida e Dirceu Benincá *

Na última década, a China buscou seu desenvolvimento através da intensa expansão de sua indústria, comércio e serviços. Com isso, vem alterando de forma significativa sua realidade sócio-econômica e ambiental, sobretudo nas grandes cidades. Este quadro é retratado no documentário Manufactured Landscapes (Paisagens Transformadas), dirigido por Jennifer Baichwal. Entre as paisagens mutantes de maior impacto, está a barragem Três Gargantas, uma monstruosa e inédita obra de engenharia, a maior central hidrelétrica do mundo, planejada para fornecer energia para o complexo industrial daquele país.

A barragem está em execução há vários anos e tem previsão de ser concluída em 2011. Para se ter idéia de sua magnitude, a quantidade de aço utilizado nela seria suficiente para construir 63 torres Eiffel. A hidrelétrica deverá ter uma capacidade de geração de 22.500 MW e o acúmulo de água poderá aumentar os riscos de terremotos na região. Quase um milhão e meio de pessoas serão forçadas a deixarem seus locais de origem. As autoridades estimam que outros 4 milhões de pessoas sejam deslocadas até o ano de 2020. A construção da barragem implica a destruição de 13 cidades e mais de mil vilas.

O acelerado desenvolvimento econômico da China, com a superexploração da mão-de-obra nas fábricas, mostra o aspecto perverso do capitalismo moderno. Diante disso, os trabalhadores reagem de várias formas na defesa dos seus direitos. Em 2004, por exemplo, houve 74 mil manifestações, greves e diversos incidentes maciços. O governo chinês abandonou a tentativa de construir o socialismo naquele país, privatizando empresas, retirando direitos trabalhistas, direitos de habitação digna, de cuidados médicos, de educação etc., até então fornecidos gratuitamente pelo Estado.

O referido documentário é um exemplo evidente da dinâmica de destruição do planeta; uma demonstração cabal da insustentabilidade ecológica do sistema capitalista. A ascensão da China está revolucionando a economia mundial. Desde 1996, o país tornou-se o maior produtor mundial de aço. De acordo com o escritor Oded Shenkar, os chineses produzem 70% dos brinquedos do mundo, 60% das bicicletas, metade dos calçados, metade dos fornos de microondas, um terço dos televisores e aparelhos de ar condicionado, um quarto das máquinas de lavar e um quinto dos refrigeradores. Hoje existe cerca de 30 mil exportadores de produtos têxteis naquele país.

Na Revolução de 1949, a China tinha 10% de população urbana e 90% rural. O objetivo das autoridades chinesas é inverter esta estatística. O documentário Paisagens Transformadas busca mostrar a parte oculta do capitalismo e ressalta a necessidade da organização e da luta da classe trabalhadora para combater os efeitos nocivos do sistema de mercado. Durante a era maoísta, tinha-se a compreensão de que o desenvolvimento industrial devia estar a serviço das pessoas. Agora, a perspectiva é de que as pessoas estejam a serviço do desenvolvimento industrial e do consumo.

Paralelamente a este acelerado desenvolvimento - que gera acúmulo de lucro e riqueza - crescem os problemas sociais, como a insegurança e a escassez alimentar para milhões de seres humanos na China e em diferentes partes do mundo. Esta situação é demonstrada por outro documentário intitulado We Feed the World (Nós alimentamos o mundo), sob a direção de Erwin Wagenhofer. O mesmo ressalta a violência nas relações mercantis na atualidade, em uma sociedade global, bem como a violência no que diz respeito à apropriação da produção e do excedente econômico. Evidencia também as consequências da concentração da renda, entre as quais o agravamento do ciclo da fome e da pobreza no mundo.

A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) estima que 75 milhões de pessoas, em 2007, e mais 40 milhões em 2008 vieram engrossar as fileiras dos subalimentados do planeta, devido principalmente ao aumento dos preços dos bens alimentares. Isso fez com que o número de pessoas com fome no mundo atingisse os 963 milhões contra os 923 milhões em 2007 (FAO, setembro e dezembro de 2008).

Como se vê, as estatísticas são dramáticas. Segundo o relatório de janeiro de 2009, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a taxa de desemprego no mundo poderá subir de 6% em 2008 para 7% em 2009. O relatório aponta ainda que o número de trabalhadores extremamente pobres que ganham menos de 1,25 dólares por dia poderá também aumentar para perto de 200 milhões. Em 2007, 21% dos trabalhadores eram muito pobres e esta cifra poderá alcançar os 27% em 2009.

O modelo neoliberal é a mola propulsora da crise financeira, econômica e socioambiental atual, tendo como conseqüência o aumento do desemprego, da pobreza, da fome, da exclusão social e do aquecimento global, especialmente nas três últimas décadas. Com esse modelo, tudo o que é considerado um obstáculo à livre concorrência dos mercados (de trabalho, de produtos, de dinheiro, de títulos) tem que ser eliminado. Em outras palavras, a globalização hegemônica não tolera outro modelo de desenvolvimento e nem a regulação do mercado. O que fazer quando os "negócios da China" causam fome?

* Antonio Alves de Almeida e Dirceu Benincá, doutorandos pela PUC/SP.

Fonte: Revista Missões

 

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