Cristianismo: volta às fontes

Os distúrbios ou disfunções orgânicas, como também as tensões ou adversidades que nos afligem costumam ter uma abrangência psicossomática.

Por Alfredo J. Gonçalves

Determinados setores da Igreja Católica – em geral conservadores, tradicionalistas e direitistas – tentam retomar uma certa forma de dualismo maniqueísta que nada tem a ver com a Boa Nova de Jesus. Diferentemente do maniqueísmo entre o bem e o mal, que Santo Agostinho primeiro frequentou, depois passou a combater, trata-se de um tipo de evangelização onde se cultiva uma estreita dicotomia entre as dimensões material e espiritual da fé e da religião como um todo. Como se na prática de Jesus de Nazaré e, posteriormente, na convivência das primeiras comunidades cristãs fosse possível distinguir taxativamente o lado material e o lado espiritual da vida humana.

Hoje com o avanço das ciências sociais, de modo particular na sociologia, na antropologia e na psicologia, temos conhecimento de que não existem males ou sofrimentos estritamente físicos, emocionais ou psíquicos. Qualquer doença orgânica, de um modo ou de outro, afetará também as dimensões do coração e da alma. E inversamente, toda a forma de angústia, depressão ou sentimento de melancolia, cedo ou tarde, acaba sendo somatizado. Numa palavra, os distúrbios ou disfunções orgânicas, como também as tensões ou adversidades que nos afligem costumam ter uma abrangência psicossomática. O que fragiliza o corpo fragiliza igualmente as forças emocionais e espirituais.

Impossível dissociar uma coisa da outra: as febres, temores e tremores mexem com toda a existência, uma vez que a pessoa humana forma um organismo vivo onde tudo encontra-se conectado. Tanto é verdade que os médicos, se forem realmente sensíveis e profissionais, reservam tempo à escuta atenta do paciente, sabendo que isso por si só já comporta boa parte da cura.

O que é mais urgente, cuidar das feridas de quem está caído à beira da estrada, e talvez da vida (caso do Bom Samaritano) ou reerguer o pecador arrependido, prostrado pelo pecado e a culpa (caso de Zaqueu e Mateus)? Quem deve receber prioridade, a mulher que há doze anos sofre de fluxo de sangue, ou a mulher que busca a água viva para reencontrar o sentido da vida? Nenhuma dessas perguntas faz sentido.

Em ambos os casos, a pessoa em sua totalidade orgânica, implícita ou explicitamente, pede socorro. O mesmo se dá com os cegos de nascença, com os leprosos, com a filha do centurião, com a mulher sírio-fenícia, com Nicodemos. Todos, sem exceção, confiam e buscam o Mestre para libertar-se do peso que dobra ao chão a saúde ou a dignidade. Outro exemplo é a mulher encurvada, O que na verdade a recurva? Problemas materiais ou espirituais? Não, não dá para separar uma coisa da outra, como não dá parar separar o joio do trigo. A sabedoria do Mestre é feita de atenção, sensibilidade, cuidado e sobretudo escuta. Aliás, a caravana de Jesus jamais atropela quem lhe grita por socorro. Apesar da recusa disfarçada dos apóstolos e dos discípulos, a caravana se detém, Jesus chama o enfermo (de corpo e alma) e se dispõe à escuta qualificada.

No fundo, quem é que pode dar-se ao luxo de se limitar a uma fé puramente espiritual? Somente aqueles que têm a vida material resolvida e assegurada. Mas a grande maioria do povo se equilibra no fio frágil e tênue da sobrevivência. O pão de cada dia, as “migalhas dos cachorrinhos”, o leite das crianças, a casa e o aluguel, as contas de água energia, e gás; o supermercado, a padaria e o açougue o dinheiro do transporte e o material escolar; o arroz, feijão, legumes e salada; INSS, com suas receitas e remédios; roupa e calçado – como fazer de tudo isso um compartimento estanque, dissociado da fé, do culto, da oração, da eucaristia? Um copo de água e um pedaço de pão oferecido a quem sofre de sede ou fome configura uma ação simultaneamente material e espiritual. Quem as separa, vale repetir, são aqueles que sequer sentem a materialidade nua e crua, e às vezes brutal, da existência, porque de tudo dispõem com relativa fartura.

Na última ceia, pão e a convivialidade estão de braços dados. Pão para comer e nutrir o organismo, corpo e sangue de Cristo para nutrir a alma. Alimento e eucaristia sobre a mesa/altar. Complemento que questiona, ao mesmo tempo, concentração e a exclusão. O mesmo se verifica na oração do Pai-Nosso. Na primeira parte, destaca-se o olhar para o alto, para o Pai (seu nome, sua vontade, seu reino), uma dimensão digamos vertical da fé. Na segunda parte, sublinha-se o olhar para o outro/irmão, (relações que tecemos, partilha do pão cotidiano, perdão, tentação de domínio), dimensão digamos horizontal da fé.

“Quando ofereço pão ao pobre, me chamam de santo; quando pergunto por que tem fome, me chamam de comunista”, dizia Dom Hélder. Acúmulo/fome, justiça/injustiça, guerra/paz são faces opostas da mesma moeda. E o são também o trabalho sociopastoral e político, bem como ou as dimensões material e espiritual da fé e da vida humana.

Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do Serviço de Proteção ao Migrante, SP.

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