Angra III começa em Santa Quitéria

O complexo minero-industrial projetado pelas Indústrias Nucleares do Brasil e pela Galvani S.A. propõe a lavra de 118 milhões de toneladas de colofanito (urânio + fosfato), por 20 anos, para a produção de urânio.

Por Raquel Rigotto

Alimentar as usinas nucleares, inclusive Angra III, está entre as principais justificativas do projeto de mineração de urânio e fosfato em Santa Quitéria, no sertão do Ceará.

Por detrás das narrativas de atendimento às demandas energéticas com a produção de uma energia supostamente limpa, para atender ao imperativo de resposta ao aquecimento global, estão invisibilizados os graves e duradouros riscos e impactos, locais e remotos, deste projeto.

“Deixe o dragão dormir” é a sábia resposta dos povos indígenas, quilombolas e comunidades de terreiro, de camponeses e de pescadores que habitam tradicionalmente a região ameaçada pela exploração da jazida de Itataia, onde há muito desenvolvem ricos e diversificados modos de vida, em convivência com o semiárido.

O complexo minero-industrial projetado pelas Indústrias Nucleares do Brasil e pela Galvani S.A. propõe a lavra de 118 milhões de toneladas de colofanito (urânio + fosfato), por 20 anos, para a produção de urânio – alimentando a cadeia nuclear, e de compostos fosfatados para ração animal e fertilizantes químicos – fortalecendo o agronegócio produtor de commodities. Para isso demandam 855,2 metros cúbicos de água por hora, o equivalente a 54 caminhões-pipa, enquanto algumas comunidades da região, que há anos reivindicam uma adutora, recebem em torno de 26 a 36 caminhões-pipa por mês. Para além da gritante injustiça hídrica, esse volume de água não está disponível no semiárido, e essa inviabilidade tem sido a principal justificativa do Ibama para negar a licença prévia a este projeto, em tentativas sucessivas do consórcio empreendedor nos últimos 20 anos, e que segue insistindo.

Duas pilhas com 83 milhões de toneladas de rejeito radioativo seriam a herança maldita para a região, contaminando o ar, as águas, o solo, a fauna, a flora, trabalhadores e moradores inclusive de regiões remotas, dadas as dinâmicas hidrológicas e de ventos.

Do ponto de vista da saúde humana, são fartas e robustas as evidências científicas nacionais e internacionais tanto sobre os danos do urânio, enquanto metal pesado, como de sua cadeia de decaimento sobre a saúde das pessoas: doenças geniturinárias, respiratórias, abortos e más formações congênitas, e o indiscutível câncer pulmonar, relacionado principalmente ao gás radônio. A isso se soma o comprometimento da soberania e da segurança alimentar e hídrica das populações, seja pela restrição do acesso à água para os sistemas produtivos locais, seja pela contaminação radioativa de cereais, carnes, leite, ovos e da própria água.

O histórico ambiental da INB em Caldas, MG, e Caetité, BA, não afiança sua responsabilidade com a natureza humana e não-humana. Como acreditar que os mais de 30 programas de mitigação de riscos constantes no Estudo de Impacto Ambiental serão efetivamente implementados?

A sábia resistência dos povos ameaçados pelo projeto, movimentos sociais e pesquisadoras/es organizados na Articulação Antinuclear do Ceará não tem sido suficiente para barrar a violência do Estado, que tem dado repetidos sinais de que apoia politicamente o projeto de mineração, através de memorandos de entendimento com os empreendedores, como os assinados pelos dois governos do Ceará; da desconsideração das irregularidades e insuficiências do projeto e, muito especialmente, da desconsideração da obrigação de realizar a Consulta Prévia, Livre e Informada aos povos e comunidades tradicionais afetados, como prevê a legislação vigente, derivada da adesão do Brasil à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Com todo este lastro de violência, contaminação, adoecimento e destruição, é possível dizer que a energia produzida em Angra III seria limpa??

Raquel Rigotto é médica, professora titular da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará. Núcleo Tramas/UFC

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