Centenário da morte de Franz Kafka

Os seus personagens, efetivamente, parecem fantasmas caminhado em meio a uma nebulosidade que não permite traçar com precisão os contornos das coisas, das pessoas e tampouco da paisagem.

Por Alfredo J. Gonçalves

O fantasma de Hamlet, no universo do genioso Shakespeare, apresenta-se bem concreto, podendo ser isso mesmo facilmente vingado. Não assim com os fantasmas de Franz Kafka. Este enigmático escritor de origem austro-húngara, de quem celebramos no dia 3 de junho de 2024 o centenário de morte, retrata tudo e todos de forma fantasmagórica. Basta ler algumas obras, tais como O Processo, O Castelo, A metamorfose. Os seus personagens, efetivamente, parecem fantasmas caminhado em meio a uma nebulosidade que não permite traçar com precisão os contornos das coisas, das pessoas e tampouco da paisagem. O próprio enredo, em seus começo, meio e fim, traz igualmente a imprecisão do tempo e do espaço, como também da trama e das intrigas tortuosas e complexas da narrativa.

Entre tais personagens, podemos citar K, por exemplo, o qual, aparentemente, não tem nome nem rosto, não tem família nem história. Numa determinada manhã, é visitado e detido por dois agentes policiais estranhos, sem qualquer razão explicável. Passa então a percorrer as páginas do livro O Processo, acompanhado por uma densa nuvem de burocracia, tão intrincada e labiríntica, que nunca se sabe com exatidão o que ele faz ou deixa de fazer para provar a própria inocência. De juiz em juiz, de advogado em advogado, de tribunal em tribunal, aparece cada vez mais inseguro, incerto e perdido. Avança como que nadando num mar espesso de névoa. Acaba sendo condenado à morte sem saber ao certo por quê nem por quem.

Em A metamorfose, um caixeiro viajante acorda também ele numa certa manhã transformado em um inseto monstruoso. Empreende esforços inauditos não apenas para tentar entender como isso veio a ocorrer, mas sobretudo para adaptar-se a essa situação insólita e vergonhosa. Uma vez mais, não existem explicações convincentes e o pobre Gregor deve conviver consigo próprio convertido numa espécie de barata gigante. Caricatura abjeta que retrata condições de trabalho igualmente abjetas. Gregor encontra-se perseguido por dívidas contraídas pelos pais e, para pagá-las, vê-se metamorfoseado nesse inseto que pode ser pisoteado e esmagado a qualquer momento, e por qualquer pessoa. Ao invés de caminhar com a cabeça e a dignidade erguidas, como um ser humano comum, sente-se rastejar desajeitadamente pelo peso que a existência lhe colocou sobre os ombros. Aliás, em Kafka, os personagens nada ou pouco têm de comum, normal, tomados que se encontram por uma neblina de dúvida, interrogação e inquietude.

No obra O castelo, repete-se novamente a letra K passa designar um certo agrimensor. Este personagem é requisitado por um conde, também ele fantasmagórico, para prestar-lhe seus serviços. Têm início, então, as vãs tentativas de K para entrar na morada do nobre senhor. Por mais esforços que faça, não consegue chegar a esse edifício, cuja localidade e contornos são sempre indefinidos. O agrimensor se vê do lado de fora do prédio no decorrer de toda a narração, sem saber ao certo o que fazer e com quem falar. Permanece na vila como um errante que não atenta com a forma de penetrar castelo. Este, na verdade, como que paira acima das nuvens, inexpugnável. Através do uso de muitos monólogos, os personagens, ao mesmo tempo, dizem e desdizem, afirmam e negam, coisa que revela as contradições e as diferentes interpretações do que ocorre. De novo, o leitor se encontra diante de uma atmosfera de confusão e nebulosidade difícil de acompanhar, e mais difícil ainda de entender e destrinchar.

Desnecessário acrescentar que os três personagens – o réu que é condenado sem ter como conhecer o próprio crime, o caixeiro viajante que se vê rastejando como inseto e mordendo o pó dos caminhos e o agrimensor que ignora como subir ao castelo do seu empregador – constituem figuras que, após um século, habitam os porões, as periferias e as fronteiras de nossa sociedade. Não será exagero afirmar que Franz Kafka intuiu em profundidade as tragédias dos tempos modernos e pós-modernos. Tragédias que se abatem sobre os ombros dos pobres, excluídos, migrantes, refugiados e vulneráveis da terra. Mais do que nunca, seguimos envolvidos em sombria neblina, onde as narrativas, ideologias distorcidas e mentiras deslavadas, em lugar de informar, confundem e desinformam a população em geral, e cada cidadão e cidadã em particular. Hoje como nunca as trevas obtusas e obscuras prevalecem sobre a luz e a transparência. Kafka, como verdadeiro profeta, se faz interprete não somente de sua época turbulenta, mas também dos dias atuais, ao mostrar a impossibilidade de desenhar os contornos precisos das penas e sombras, dos sonhos e esperanças que movem as lutas por uma “terra sem males” ou do Reino de Deus.

Alfredo J. Gonçalves, cs, assessor do Serviço de Proteção ao Migrante, SPM, São Paulo.

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