Garimpeiros, grileiros e madeireiros não fazem quarentena e avançam sobre os povos indígenas

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Presidente do Cimi, Dom Roque Paloschi, denuncia o desmonte dos serviços de saúde diferenciada: situação que se agrava com o aumento de invasões.

Enquanto o mundo se recolhe e segue as recomendações dos órgãos de saúde para manter o distanciamento social como forma de conter o avanço do novo coronavírus, a quarentena parece não ter o mesmo efeito sobre quem pratica ações ilegais na região amazônica. “Ao contrário, aproveitam a falta de fiscalização e de gestão política e administrativa no país para continuar com as ações ilícitas nas terras indígenas”, denuncia o arcebispo de Porto Velho, Dom Roque Paloschi, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Mas o religioso lembra que não é só a quarentena que faz crescer os ataques a povos indígenas, havendo um agravante ainda maior: “os contínuos discursos do governo do Brasil em incentivar as invasões, com sua retórica desenvolvimentista”. “Outra grande preocupação são os projetos de emenda constitucional e projetos de lei, como o PL 191/20, que regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas”, acrescenta Paloschi.

A equação é sempre desfavorável aos povos originários. Além dos objetivos ataques a reservas e aldeias, com requintes de violência e crueldade, esses garimpeiros, grileiros e madeireiros que avançam sobre a floresta são os principais vetores que levam a covid-19 para os povoados. Situação que se agrava ainda mais diante dos desmontes que os setores de atenção à saúde indígena vêm sofrendo. “Há uma situação de desmonte e descontinuidade da política da saúde indígena, e isso já vem de um tempo atrás. A saúde indígena é um subsistema do SUS, o que provoca um esvaziamento das unidades gestoras e o enfraquecimento dos distritos sanitários”, explica o religioso.

Paloschi reconhece que a situação da covid-19 e as disputas políticas que se criaram em torno da pandemia são um desafio para todos os setores. Mas lembra que, no caso dos indígenas, que já vinham sofrendo, a questão é ainda mais desesperadora. Ainda assim, defende que não se perca a esperança. Aliás, supõe que do próprio modo de vida indígena podem vir respostas para que concebamos resistências e um novo horizonte. “Uma liderança indígena daqui de Rondônia, diante das tantas ameaças e retiradas de direitos, levantou a voz e disse: ‘são 520 anos de resistência, não é esse presidente que vai meter medo na gente’. Eles continuarão lutando contra toda ameaça a sua integridade física, cultural e territorial”, reflete.

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O presidente do Cimi, dom Roque Paloschi, durante celebração do Sínodo. Crédito da foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Dom Roque Paloschi é gaúcho da cidade de Lajeado, arcebispo de Porto Velho, Rondônia, desde 2015, e presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi. É formado em Filosofia pela Universidade Católica de Pelotas, no Rio Grande do Sul, e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e desde 2005 vem atuando no episcopado da região Norte do país, quando acompanhou de perto a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol.

Confira a entrevista abaixo:

IHU On-Line – Como o senhor define a atual situação de povos indígenas da região amazônica, ainda agravada pela pandemia do novo coronavírus?

Dom Roque Paloschi – Os povos indígenas são vulneráveis às doenças imunes e respiratórias. Considerando as condições de contato forçado com a sociedade envolvente, com as inúmeras políticas de incorporação dos povos indígenas à “sociedade brasileira”, em todos os casos, o resultado foi desastroso. Inúmeros povos foram completamente dizimados.

No momento que se vive atualmente, com a pandemia, os povos indígenas têm ameaçada a sua integridade física, cultural e territorial. A falta de proteção dos territórios e a permanente fiscalização favorecem a invasão por grupos inescrupulosos, podendo levar o contágio pelo coronavírus às comunidades e povos indígenas na Amazônia e em todo o Brasil. A saúde indígena é ligada ao Sistema Único de Saúde – SUS e o atendimento específico e diferenciado é apenas para a assistência básica. Atendimentos de média e alta complexidade estão inteiramente ligados ao SUS, que se encontra fragilizado e em alguns estados do Brasil já está colapsado com as demandas de outras doenças, a exemplo da dengue e da malária, que acometem a população na Amazônia e em todo o país. A situação de vulnerabilidade dos povos indígenas se agrava quando se fala de uma pandemia tão letal como a da covid-19.

IHU On-Line – Que informações tem sobre a morte de indígenas por covid-19 no Amazonas e de um jovem Yanomami de 15 anos que morreu em Roraima, e como esse caso pode servir para evidenciar a atual situação?

Dom Roque Paloschi – A informação que temos é que o jovem era natural da aldeia Rehebe, localizada na Terra Indígena Yanomami, mas passou a residir na Terra Indígena Boqueirão, dos povos Macuxi e Wapichana, no município de Alto Alegre, a 87 quilômetros de Boa Vista. O motivo da mudança foi dar continuidade aos estudos. Ao apresentar os primeiros sintomas da covid-19, o jovem foi atendido no Hospital Municipal de Alto Alegre. Posteriormente, acabou sendo encaminhado ao hospital geral, já com um quadro de Síndrome Respiratória Aguda Grave – SRAG. Ele refez o teste para diagnóstico de coronavírus e somente a contraprova detectou a infecção.

Em diversos povos, infelizmente, já há registro de contágio por covid-19. O Conselho Indigenista Missionário – Cimi tem denunciado a subnotificação de casos da covid-19 entre os índios. E alertam que ao menos outros dois indígenas contaminados pelo novo coronavírus já foram a óbito e que o Governo não registrou as ocorrências no balanço. Os indígenas eram uma mulher da etnia Borari, de 87 anos, que morreu em Alter do Chão, no município de Santarém (PA), e o outro era um homem de 55 anos, do povo Mura, morto em Manaus.

Em resposta às denúncias do Cimi, a Secretaria Especial de Saúde Indígena respondeu que os casos não foram contabilizados por se tratarem de indígenas de contexto urbano. Este exemplo é apenas para mostrar que os dados divulgados pelo Ministério da Saúde não apresentam toda a realidade.

IHU On-Line – Quais são as maiores ameaças aos povos indígenas e quais os desafios para a proteção desses povos diante desse cenário? Considerando seus modos de vida, que medidas poderiam ser adotadas?

Dom Roque Paloschi – A principal preocupação e ameaças com relação aos povos indígenas é que garimpeiros, grileiros, madeireiros e invasores em geral, não fazem a quarentena. Ao contrário, aproveitam a falta de fiscalização e de gestão política e administrativa no país para continuar com as ações ilícitas nas terras indígenas, com um agravante maior, os contínuos discursos do governo do Brasil em incentivar as invasões, com sua retórica desenvolvimentista. Outra grande preocupação são os projetos de emenda constitucional e projetos de lei, como o PL 191/20, que regulamenta a exploração de recursos minerais, hídricos e orgânicos em reservas indígenas.

A principal preocupação e ameaças com relação aos povos indígenas é que garimpeiros, grileiros, madeireiros e invasores em geral, não fazem a quarentena – Dom Roque Paloschi

Os povos indígenas vivem uma situação de total violência e violações de direitos pela ausência do Estado brasileiro e sua ineficácia em coibir os atos ilícitos de invasões e desconstituição dos artigos 231 e 232 da Constituição Federal. Isso tudo coloca em risco a integridade física, cultural e territórios dos povos e, consequentemente, compromete diretamente o modo próprio de vida dos povos indígenas.

IHU On-Line – Qual a sua avaliação quanto à reposta do atual governo federal aos povos indígenas diante da ameaça da covid-19?

Dom Roque Paloschi – A exemplo do que ocorre no Brasil como um todo, em relação às respostas e às políticas adotadas pelo governo federal, vemos um desgoverno e a falta de ações eficazes no combate à covid-19. Com os povos indígenas, a situação é mais grave. Há uma situação de desmonte e descontinuidade da política da saúde indígena, e isso já vem de um tempo atrás. A saúde indígena é um subsistema do SUS, o que provoca um esvaziamento das unidades gestoras e o enfraquecimento dos distritos sanitários. Com uma situação de pandemia causada pela covid-19, essas unidades ficam mais fragilizadas pela falta gestão e de recursos humanos e financeiros para atender a grandes demandas dos povos indígenas.

A exemplo do que ocorre no Brasil como um todo, em relação às respostas e às políticas adotadas pelo governo federal, vemos um desgoverno e a falta de ações eficazes no combate à covid-19 – Dom Roque Paloschi

IHU On-Line – Nessa pandemia do novo coronavírus, governadores e prefeitos têm se destacado positivamente pelas ações que têm tomado, tentando frear o avanço da doença e o colapso do sistema de saúde. Mas como o senhor observa a ação de prefeitos e governadores na proteção aos povos indígenas?

Dom Roque Paloschi – Estados e municípios, em relação à covid-19, têm tomado ações para frear o avanço da doença, mas não tem sido suficiente. O que vemos na Amazônia como um todo é a falta de atenção de média e alta complexidade. O que havia antes já não dava conta da grande demanda. Falo isso a partir do que observo no estado e município onde vivo. A situação do sistema de saúde já era grave antes desta pandemia.

O que vivemos agora chega à beira do colapso das unidades de saúde, seja ela de atenção básica, média ou alta complexidade. Como pensar a situação dos povos indígenas se a saúde indígena é um subsistema do SUS?

Vemos com preocupação a ameaça que hoje paira sobre os povos indígenas, pois os estados e municípios pouco se empenharam em atender as demandas dos povos, relegando este atendimento à esfera federal. Muitos indígenas se queixam de não serem atendidos na rede pública, sobretudo os povos que vivem em contexto urbano. A resposta da unidade de saúde local é que busquem a saúde indígena. Muitos procuram o Ministério Público Federal para fazer valer o seu direito de cidadão.

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Dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho (RO) e presidente do Cimi. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

IHU On-Line – Podemos considerar que a covid-19 é hoje a ameaça mais direta aos povos originários, mas os ataques começaram muito antes com o desmonte de atenção à saúde indígena?

Dom Roque Paloschi – O cenário que temos atualmente no Brasil não é nada consolador, quando vemos os dados de violências e violações de direitos cometidos contra os povos indígenas. As ameaças aos direitos indígenas são sistêmicas e vêm ocorrendo sistematicamente.

A retórica que fomenta o preconceito e a discriminação, somada às políticas em curso do atual governo, é de desrespeito e de desconstituição da Constituição Federal. O resultado dessa política nefasta é a abertura e entrega do território para o capital econômico internacional, sobretudo com a Medida Provisória 910/19, que o governo enviou ao Congresso Nacional. Esta medida permite e legaliza a grilagem de terras, o desmatamento e os empreendimentos econômicos e, consequentemente, a invasão e devastação das Terras Indígenas e dos territórios tradicionais.

A retórica que fomenta o preconceito e a discriminação, somada às políticas em curso do atual governo, é de desrespeito e de desconstituição da Constituição Federal – Dom Roque Paloschi

E, para piorar a conjuntura, o presidente da Fundação Nacional do Índio – Funai, no último dia 22 de abril, editou atos normativos internos. É o caso da instrução normativa 9/2020, que altera o documento “Declaração de Reconhecimento de Limites”, colocando em risco 237 processos de demarcação de Terras Indígenas, que aguardam apenas a homologação.

O atual governo, além dos inúmeros decretos, medidas provisórias, vem dissecando economicamente e inviabilizando politicamente o trabalho dos órgãos de fiscalização e proteção das Terras Indígenas e as políticas públicas no campo da educação, saúde e sustentabilidade, sem falar na paralisação de todas as demarcações de terra. A partir desse cenário, no Brasil, vai se firmando a postura autoritária de um governo que segue as orientações do capital econômico, em detrimento da nossa Lei Magna, a Constituição Federal.

Volta a lógicas militares

Desta forma, o governo retoma as políticas indigenistas pautadas durante os governos militares, em prol do desenvolvimento social e econômico do país. É o caso daquelas relacionadas a novas frentes econômicas ou de defesa das fronteiras, em detrimento dos direitos conquistados e garantidos constitucionalmente. É preocupante a perspectiva integracionista do atual governo, que se firma numa política “neocolonialista e etnocida”, liberando para a exploração econômica os territórios onde habitam estes povos. Mais preocupante ainda é a situação dos 110 povos indígenas livres/isolados que habitam o território brasileiro, sobretudo na Amazônia, que estão seriamente ameaçados em sua integridade física, cultural e territorial.

No Legislativo, inúmeros projetos de Emendas Constitucionais e Leis tramitam, são mais de 800 projetos que atentam contra os direitos ambientais e o futuro dos povos, em especial os povos indígenas e comunidades tradicionais, desconstituindo o direito assegurado na Constituição Federal de 1988. Um exemplo é o PL 191/2020, enviado à Câmara pelo governo Bolsonaro, que é uma proposta que coloca em risco a vida dos povos indígenas porque pretende liberar práticas de mineração, garimpo, hidrelétricas, agronegócio e exploração de petróleo e gás natural em terras indígenas.

Outro exemplo é a matéria que tramita no Supremo Tribunal Federal – STF, o Recurso Extraordinário – RE 1017365. Trata-se de uma reintegração de posse movida pela Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina – Fatma contra a Funai e indígenas do povo Xokleng, que ocupam uma área reivindicada e já identificada como parte de seu território tradicional. O caso será julgado pelo STF como um caso de repercussão geral, que terá consequência para todas as Terras Indígenas do Brasil.

No Brasil, os povos indígenas já viveram esta situação de quase genocídio, devido às inúmeras frentes colonizadoras que dizimaram povos inteiros. A melhor forma de garantir a integridade física e cultural dos povos indígenas, e sobretudo dos povos isolados, é dispensar esforços, recursos e medidas de proteção e fiscalização permanentes dos territórios, coibindo qualquer ação ilícita dos invasores.

IHU On-Line – Especificamente com relação à atividade de mineração, como o garimpo vem, nos últimos meses, se configurando como uma das principais ameaças aos indígenas?

Dom Roque Paloschi – Desde que assumiu a presidência, Bolsonaro deixou clara sua política de trabalho: abrir as Terras Indígenas brasileiras para a exploração do subsolo e dos recursos hídricos com o falso discurso de que elas devem ser aproveitadas economicamente, apresentando o PL 191/2020. O PL 191/2020, somado à retórica do governo brasileiro, aumentou o número de garimpos ilegais em Terras Indígenas, agravando ainda mais as invasões dessas terras, sobretudo na região amazônica, onde se concentra um grande número de riquezas minerais. O PL 191/2020 se configura como um projeto de morte para os povos indígenas e, consequentemente, a invasão e a desterritorialização dos povos indígenas, assim como a violação dos direitos e perda da autonomia, duramente conquistados e garantidos na Constituição brasileira e em tratados internacionais.

O PL 191/2020, somado à retórica do governo brasileiro, aumentou o número de garimpos ilegais em terras indígenas, agravando ainda mais as invasões – Dom Roque Paloschi

Outra consequência grave é a volta da tutela, retirando o poder de veto dos povos indígenas com relação à exploração de seus territórios. Na prática, acaba se fazendo uma consulta apenas protocolar às comunidades indígenas, sem serem escutados no seu direito de aceitar ou não a atividade de mineração e outros empreendimentos econômicos que coloquem em risco a autonomia das comunidades indígenas.

IHU On-Line – O que as ações do governo de Bolsonaro revelam sobre o futuro dos povos indígenas? E como resistir a esse futuro e, em alguma medida, frear esse genocídio que se anuncia?

Dom Roque Paloschi – A conjuntura que vivemos atualmente é anti-indígena e voltou com força, mas os povos indígenas, ao longo da história, sempre foram criativos nas estratégias de resistência. Uma liderança indígena daqui de Rondônia, diante das tantas ameaças e retiradas de direitos, levantou a voz e disse: “são 520 anos de resistência, não é esse presidente que vai meter medo na gente”. Eles continuarão lutando contra toda ameaça a sua integridade física, cultural e territorial

Nós, sociedade envolvente e todas as pessoas de boa vontade, somos convocados a lutar contra esta política de morte, sobretudo agora neste momento de pandemia da covid-19, em que os povos indígenas, os pobres são os mais vulneráveis. Precisamos nos tornar próximos e ser solidários, para que estes povos possam continuar resistindo e construindo seu futuro.

IHU On-Line – O senhor é arcebispo de Porto Velho, em Rondônia. Gostaria que relatasse como as maiores cidades da região amazônica vêm acompanhando esses ataques aos povos originários.

Dom Roque Paloschi – Volto a repetir, como sociedade e igreja, precisamos crescer na solidariedade e proximidade com os povos indígenas. Para muitos de nós, da sociedade como um todo, os povos indígenas continuam sendo invisibilizados e tratados como empecilho para o modelo de desenvolvimento econômico que temos em toda a região amazônica.

Infelizmente, a região amazônica é vista como uma grande fonte de riqueza, que somente vamos tirando, seja com o desmatamento da floresta, a contaminação das águas, seja através de inúmeros projetos econômicos. Não nos damos conta de que a Amazônia é finita e está totalmente ameaçada por interesses econômicos, pela omissão dos governantes e pelo crime organizado, que atua na região.

IHU On-Line – O Amazonas, e Manaus em especial, vive uma verdadeira situação de catástrofe em decorrência da covid-19. Como está a situação em Rondônia, sobretudo Porto Velho?

Dom Roque Paloschi – A situação na Amazônia como um todo é muito preocupante com esta situação de pandemia causada pela covid-19, pois a maioria das cidades da Amazônia brasileira tem um mínimo de infraestrutura, faltando serviços básicos essenciais, como saneamento básico, unidades públicas de saúde e quase nada dos serviços de saúde de média e alta complexidade para atender a população dos estados. Devido à alta mobilidade das pessoas entre um estado e outro na Amazônia, somada à falta de políticas públicas no controle de epidemias e pandemias, a covid-19 tem um terreno propício para se alastrar rapidamente no meio da população que vive na Amazônia, tendo um resultado desastroso a curto e médio prazos.

A situação que se instalou no estado do Amazonas, principalmente na capital, é um retrato do que pode ocorrer em todos os estados da Amazônia brasileira e repercutir nos demais países pan-amazônicos, onde a pobreza, a falta de políticas públicas e compromisso dos governos são semelhantes.

IHU On-Line – Como a Igreja na região vem atuando?

Dom Roque Paloschi – A Igreja vem atuando diretamente nas ações solidárias ao povo, em especial com os moradores de rua, com os grupos de venezuelanos, haitianos, cubanos e outros imigrantes que chegam às nossas regiões. São muitas as ações aos grupos mais vulneráveis, além do apoio emocional e espiritual às pessoas e famílias vítimas da pandemia.

IHU On-Line – De que forma na pandemia, e mesmo num cenário pós-pandemia, o trabalho de missionários pode ser impactado? Como evitar que isso se converta em mais abandono às comunidades indígenas e populações amazônicas?

Dom Roque Paloschi – Com a situação de pandemia pela covid-19 que vivemos atualmente e as medidas de isolamento social, o trabalho junto às comunidades indígenas acontece a distância, uma vez que muitos povos e comunidades optaram por fazer o isolamento social. O trabalho de denúncia das situações de invasões, violências e violações é realizado uma vez que as comunidades indígenas e lideranças denunciam as ameaças, violências e invasões de suas terras.

Outro trabalho que vem sendo feito é ajuda solidária aos povos, com alimentação e materiais de higienização, já que muitos povos vivem em situação permanente de vulnerabilidade alimentar, devido à não demarcação de suas terras. Um exemplo são os povos Guarani Kaiowá, que tiveram as cestas básicas cortadas pelo governo federal.

É claro que vivemos um tempo em que é necessário e urgente reinventar nosso trabalho missionário junto às comunidades indígenas. Isso exige criatividade e atenção constante às medidas do Estado brasileiro em desrespeito aos direitos dos povos indígenas e a sua autonomia enquanto povo, como preconiza a Constituição Federal. Estamos de todas as formas buscando meios de manter a comunicação e apoio solidário com os povos indígenas e o trabalho da comunicação, jurídico e político do Cimi. Isso é muito importante e significativo em alianças com outros grupos, instituições e plataformas de luta pela garantia dos direitos dos povos indígenas.

IHU On-Line – Desde 1500, quando um grande número de europeus começa a atracar no Brasil, os povos indígenas sofrem com as “doenças importadas”. Não aprendemos nada desde a chegada das primeiras naus portuguesas?

Dom Roque Paloschi – O grande problema é a visão de superioridade da cultura ocidental em relação aos demais povos e crer que os povos indígenas são empecilhos para o desenvolvimento econômico do país. Desde 1500 até hoje, temos uma cultura que não quer ver a diversidade e a diferença cultural como potencialidade e possibilidade de um novo projeto de vida, novo paradigma civilizatório. Os povos indígenas, com seus projetos próprios de vida, nos apresentam uma nova forma de relação com a casa comum e com todos os seres criados. Tudo está interconectado, “tudo o que fizermos à terra, faremos aos filhos da terra”. Este grande aprendizado nos livraria dos caos, da morte e da destruição.

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Indígenas em caminhada junto com Papa Francisco durante o Sínodo da Amazônia, em outubro. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

IHU On-Line – A Encíclica Laudato Si’ e o Sínodo Pan-Amazônico ainda reverberam na região?

Dom Roque Paloschi – O Sínodo da Amazônia a tirou da periferia e a trouxe para o centro da discussão, reflexão, tanto no interior da Igreja, como também na sociedade civil. E isso especialmente com relação ao clamor dos povos indígenas, no que se refere à defesa de sua vida, terra e direitos. As palavras do Papa Francisco em Puerto Maldonado, no Peru, quando lançou oficialmente o Sínodo, em janeiro de 2018, chamou a atenção de todas as pessoas: “é urgente romper com o paradigma histórico que vê a Amazônia como uma despensa inesgotável dos Estados sem levar em conta seus habitantes”. Os povos indígenas estão sendo ameaçados porque a vida, a terra, as florestas e tudo o que é necessário para o bem viver estão sendo cobiçadas por grupos econômicos, grandes empresas que buscam tirar o que há de melhor em suas terras, deixando os povos indígenas sem a vida.

Durante o período do Sínodo da Amazônia, os povos indígenas foram incisivos nas propostas no que diz respeito ao seu protagonismo, à defesa dos seus direitos, territórios e seus modos próprios de vida. A Igreja reconhece que os povos originários foram ao longo da história e continuam sendo os guardiões no cuidado da mãe terra e da casa comum. A defesa da vida, da terra e dos direitos constitui-se em um princípio evangélico, em defesa da dignidade humana. Assim, a igreja na Amazônia e como um todo assume ser aliada dos povos indígenas na defesa dos seus territórios e direitos, bem como assume dialogar permanentemente e reconhecer o protagonismo dos povos indígenas na busca de caminhos para a vivência do Evangelho, de acordo com suas tradições, num diálogo respeitoso em busca de “novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”.

Temos a voz profética do Papa Francisco com a Querida Amazônia, que promove na igreja e na sociedade uma consciência acerca da ‘ecologia integral’; tudo está interligado e interconectado, pois ela se destina a todas as pessoas de boa vontade. Vivemos um momento em que as pessoas estão carentes e sedentas de sonhos e utopias. Manter acesa a chama da esperança é o maior desafio que temos atualmente no mundo. O Papa Francisco recupera essa dimensão da esperança profética. Que gesto mais bonito e solidário do Papa Francisco em telefonar para Dom Leonardo [Steiner, arcebispo de Manaus] e se preocupar com os povos indígenas e amazônicos, especialmente os mais pobres.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Dom Roque Paloschi – Ainda nesta situação de pandemia causada pela covid-19, temos que conviver com a situação de instabilidade e descaso político no Brasil. Enquanto sofremos e choramos a morte de tantas vítimas, ainda temos que conviver com o desrespeito pelos direitos humanos elementares. Vemos na Amazônia o aumento do desmatamento, a morte de lideranças indígenas e dos movimentos sociais, enquanto os assassinos e mandantes continuam impunes.

Não percamos a esperança. Vivemos o momento pascal, marcado pela esperança do ressuscitado. Estamos atravessando tempos muito difíceis, em que precisamos reinventar a nossa pastoral para continuar o mandato de Jesus Cristo “que todos tenham vida e vida em abundância”. É momento de não perder o foco e ficar com o essencial para a nossa vida, cultivar relações fraternas e solidárias com os mais pobres e vulneráveis e de cuidar da nossa casa comum, que grita em dores pelas muitas destruições. Sejamos corajosos e não nos fechemos no medo; este é mais letal que qualquer outra arma.

Fonte: Cimi

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