Padre Isaack reflete em crônica, aspectos da pandemia entre os indígenas e seu trabalho na Amazônia.
Por Isaack Mdindile*
A vida não é só produzir e reproduzir. Nem todo aprendizado vem só das escolas, faculdade e cursos. Que muitas vezes se preocupam mais em produzir papéis e certificados. Sou missionário, eternamente aprendiz e viajo muito pelas serras da Amazônia. Nessas regiões encontro gente que não sabe ler livros, lecionários. Mas que sabe ler e saborear o seu mundo. Nesse universo de outros saberes, sou eu o analfabeto. Não sei ler sacramentos da terra, das árvores, não sei caçar a noite, e nem sei sentir o cheiro da chuva. Esses povos originários sabem muita coisa porreta, mas ninguém dá brecha para índios, quilombolas e ribeirinhos. Acham caboquice (comportamento interiorano). Se esse povo fosse importado (como é o caso da nossa democracia brasileira) seria outra batida de coração.
Prefiro trabalho que emprego. Mas nem tudo é trabalho, assim como a vida não pode ser apenas uma preparação para o futuro. Viva o agora. Em casa ou na rua, obrigatoriamente agora, de máscara. Pronto, falei. O projeto de vida ou a meta para 2020 é sobreviver, e outra metade é viver. Isso se chama investimento em longo prazo.
Não é a Covid-19 que vai parar e barrar a luta dos nossos parentes. Há 500 anos de resistência contra outros vírus de sangue e osso-de-civilização de lixo e necropolítica. Ficamos isolados de nós mesmos enquanto vivíamos uma vida de verdadeiro isolamento de quem somos.
Desculpa a demora, acabei de tomar banho, mas esqueci de lavar as mãos por isso voltei ao banheiro. Esse isolamento tem nos deixado confusos! Mas eu pergunto: será que essa máscara que estamos usando para sair de casa é diferente da que usamos no dia a dia para mostrarmos ser alguém que nem sabemos se somos, ou será que precisamos dela para mostrar para as pessoas o que a gente acha que elas gostariam que a gente fosse?
Tá ligado, pois tudo está interligado. E acho que uma das lições quase obrigatórias dessa coroa de Coronavírus é justamente dizer que “vós, homens, podeis muito, mas não podeis tudo”. Veja, o próprio isolamento está recuperando o brilho das relações humanas e espirituais. Esses povos originários, não entendem (e têm razão) as nossas narrativas muitas vezes incompletas e dualistas, tipo de separar terra e homem, corpo e alma, domingo e sexta-feira, política da esquerda e direita. A visão geral do povo se baseia na sabedoria milenar de viver em rede, costurando comunhão e união. No princípio ápice de bem-viver ao invés de viver bem. Entendeu a diferença?
Lembro que ano passado, 2019, visitando uma maloca (comunidade) de Caxirima-Região Serras, depois da recepção calorosa, um ancião chamado Zé Curupira me contou a gênesis da comunidade, de que vieram de longe para reconquistar a terra que foi invadida pelos garimpeiros e fazendeiros. E em suas palavras; “agora a terra tem fome, precisamos urgente plantar peixes nos rios, plantar chuva no céu, plantar flores no coração da vida e plantar sorriso nos lábios da morte. E que o humano está cada vez mais se desumanizando”.
Fiquei arrepiado com essa intensidade ontológica da fala. Foi tão original!
Vi e senti que a sua boca e rosto tem muito a contar, como “ser mestre em dançar parixara e aleluia no nascimento do Pai, na cabeça do ano e na morte do Nosso Senhor. Orienta os jovens em fazer baldes de pajuaru, de caxiri, e de mocororó” (são bebidas tradicionais). Tudo isso fiquei sabendo depois da missa. Ele é muito sensível, aliás, todo esse povo é, e mais ainda, silencioso. Emprestam mais ouvidos e prestam atenção nas pequenas coisas, nas falas não ditas. E essa é a primeira lição da psicanálise: se você quiser descobrir segredos, preste atenção nas coisas pequenas, aquelas coisas que ninguém nota. É nelas que se revelam os segredos.
Enfim, o tempo se abalou no templo onde fomos rezar a vida. E durante a missa, partilhamos o pão e a palavra, pois a fome e a sede não perdoam. Para não dizer que a nossa maior riqueza é a insatisfação, a incompletude. Louvado seja Deus!