O tempo passa, mas não passa. As circunstâncias da história muitas vezes acabam voltando inesperadamente ou vão sendo revividas, ‘como farsa, ou como tragédia’.
Por Selvino Heck*
Revirando tralhas acumuladas ao longo dos anos, descobri um texto escrito nos idos de 1975, inacreditáveis 41 anos atrás, com o título `Meditação`. Eram tempos de ditadura militar, eu era estudante de Teologia e Letras na PUC-RS, representante dos alunos junto à direção da Faculdade de Teologia e representante geral dos alunos junto à Reitoria da Universidade em nome do DCE (Diretório Central dos Estudantes).
A ‘meditação’, de 8 de agosto de 1975, é dirigida aos estudantes e aos jornalistas. Começa assim: “Enquanto a liberdade não vem, vamos remando de todos os modos possíveis. Nós, estudantes, como vocês, jornalistas, somos, sem dúvida, uns sobreviventes. É realmente difícil uma verdadeira política estudantil atualmente, senão impossível. Além de sermos poucos em número, somos cerceados e limitados perceptível e imperceptivelmente.”
Eram tempos difíceis como os de hoje, quando uma Secretaria do Ministério da Educação pede que os alunos que ocupam escolas, Institutos Federais e Universidades sejam delatados pelos Reitores. Ou quando uma reforma do ensino médio, proposta de cima para baixo por um governo ilegítimo, retorna, em muitos aspectos, ao sistema escolar dos tempos da ditadura.
Continua a meditação de 1975. “Muitas vezes nem se sente a ação repressiva. Ela é ‘macia’ e ‘cordial’. O ‘diálogo’ é estimulado. A liberdade de opinião e expressão é até exaltada. Mas na hora das medidas práticas tudo muda de figura. É porque elementos ideológicos são incompatíveis com o estudante universitário. Política faz-se nos partidos, como se só existisse política partidária.” (Vale lembrar que naqueles idos só havia dois partidos legalizados: ARENA e MDB.)
Em 1975, eu não estava falando da Escola Sem Partido, como se fala em 2016. “Estudante não deve pensar. Que é isso? É preciso estudar, isso sim. As fórmulas matemáticas estão aí para isso mesmo. As técnicas comerciais são mais importantes que qualquer conteúdo humano. E nem se fale de Universidades em crise. O tempo é de aceitar tudo como vem. A crítica é impossível. O silêncio nos rodeia. Congressos, simpósios e seminários só podem acontecer caso sejam eminentemente técnicos e, portanto, totalmente descompromissados com o atual momento histórico e a sociedade em que vivemos. Caso contrário, os salões não são cedidos, a não ser com aprovação pelo DOPS (sim, grifo meu, DOPS, Departamento de Ordem Política e Social), como aconteceu recentemente aqui na PUCRS com o ‘Encontro Nacional de Estudantes de Administração’.”
Eram tempos de ditadura militar e repressão, mas às vezes parece que voltamos a eles hoje, 2016. “Jornais e publicações são logo proibidas ou é-lhes exigida censura prévia, como se fossem imprensa oficial e devessem algo a alguém. Pelo menos assim pareceu pensar o Diretor do Instituto de Teologia da PUC-RS quando proibiu novas publicações do Diretório Acadêmico do Instituto de Teologia, ou submeteu-as à censura prévia e autorização pessoal, logo depois do aparecimento público do primeiro boletim DAIT-COMUNICAÇÃO de setembro deste ano. Aulas de ’Estudos de Problemas Brasileiros’ são transformadas, eufemisticamente, em alguns vagos e abstratos princípios de Moral e Cívica de segundo grau, se chegam a tanto.”
Escrevo em 1975. “É uma situação calamitosa. E triste. Sobretudo triste. Dá para ver tantos estudantes sem qualquer consciência de sua missão e sem ao menos saber, muitas vezes, porque estão na Faculdade, que pretendem, que esperam. Tudo aceitam, estão conformados. Foram engolidos.”
A ‘Meditação’ é de agosto de 1975. O resultado final era de se esperar. Ao final de 1975, início de 1976, como não nos submetemos e não aceitamos as ordens superiores, eu e os responsáveis do DAIT-COMUNICAÇÃO, Hermes Miolla, Paulo Vidor e Nínive Figueiró, tivemos negada nossa matrícula na PUC-RS em 1976, fórmula branda para a Universidade não dizer que fomos expulsos, ou que tivesse aplicado os Decretos 477 ou 228 da ditadura, então vigentes.
Mas sempre resta a esperança, ontem como hoje. Termina assim a ‘Meditação’ de 8 de agosto de 1975, dirigida a estudantes e jornalistas: ~Há que trabalhar, contudo. E remar, mesmo se contra as ondas, o medo e o frio. A reação deverá acontecer. O silêncio não pode ser eterno. Nem a repressão.”