O mundo facebook

Elaine Tavares *

Assisti outro dia o filme que conta a história do garoto que criou o facebook. Na visão de quem fez o roteiro, ele aparece como um jovem frio, calculista, que passa por cima de todo mundo, inclusive dos amigos, para viabilizar seu projeto de rede social. Não sei se essa é a verdade sobre Mark, mas penso que sua criação segue um pouco dessa ideia. O tal do "face" é hoje, para além de uma ferramenta que pode unir pessoas e ideias, um espaço de mentiras e manipulações. É um labirinto no qual se anda sem o fio de Ariadne, logo, podendo ser devorado pelo monstro a cada passo.

O facebook é, obviamente, um espelho da existência do mundo moderno, capitalista. Tempos do "último homem", como diria Nietzsche, na sua avassaladora crítica à modernidade. Para o filósofo alemão, chegaria um tempo em que o ser humano só faria aquilo que quisesse, sem levar em conta nem a ética, nem a moral. Um tempo anômico, sem normas ou regras. Apenas o querer individual, a vertigem da sensação. É o que temos. Mas, claro, isso não é para todos. É para quem pode ter acesso a esse mundo virtual. Há que se levar em conta que o "mundo encantado" das redes sociais não chega em quase 5 bilhões de pessoas no mundo. Segundo dados da União Internacional de Telecomunicações, apenas 35% dos habitantes do planeta têm acesso à internet. Existem pessoas que sequer fizeram sua primeira ligação telefônica, que dirá ficar de folga no face. Então, quando pensamos a realidade das redes, há que levar em conta isso.

Mas, para os 35% que já consomem os serviços dos servidores mundiais, conectados às redes mundiais, o universo passa a ser definitivamente virtual. É quase como uma "segunda vida", dessas que os programinhas de jogos já inventaram faz algum tempo. Só que, no caso do face, tem aparência real do real. E, muitas vezes se faz real, de verdade.

Coisas que até pouco tempo só eram ditas no recôndito das casas, entre amigos muito íntimos, de confiança, hoje são alardeadas em nível mundial, sem qualquer prurido. É o tempo vale-tudo, como nas lutas de MMA. Aparecem os discursos da violência, do ódio, do preconceito. Não há barreiras para nada.

E, nesse universo de mundos inventados, a realidade pode ser manipulada ao prazer de cada um. Alteram-se fotos e o discurso ganha concretude de verdade, até porque ainda existe uma certa ideia de que a fotografia é um documento do real. Bom, não é mais. Qualquer criança de mais de 10 anos já domina o fotoshop ou outro programa de manipulação de fotos. A pessoa fica bonita, ou feia, os lugares ficam mais coloridos, põem-se coisas, tiram-se outras. A foto não é mais documento. Ela é lugar do querer egóico do último homem. Não se pode mais crer.

Se alguém pensava que a televisão - por ser um espaço onde não há interação - era manipuladora, parece não ter a real noção do que sejam as redes sociais. A interação não garante a veracidade. Um denúncia de um ato no Irã pode não ser verdade, pode ser apenas uma criação, uma junção de imagens de outras épocas ou fatos. Mas, vira verdade quando alguém a joga na rede e ela viraliza segundo os interesses das forças políticas.

Sou jornalista e esse é um tema que me toca profundamente. Venho de uma geração na qual a dobradinha repórter/fotógrafo fazia toda a diferença. Estar num lugar e ter a foto do fato era tudo que se poderia querer. A foto e a imagem eram a prova cabal de que algo realmente acontecera. Hoje, estamos nesse tempo fluido, difuso, manipulador. Nada mais prova nada. Tudo pode ser fake. É como andar na corda bamba sobre o penhasco. Cada palavra, cada imagem precisa ser checada e re-checada. Mas, isso não é mais suficiente. Porque uma vez divulgada a foto manipulada, mentirosa, já ninguém mais a consegue parar. As pessoas acreditam naquilo que sua capacidade cognitiva consegue abranger. Pode-se mostrar a foto verdadeira e nada muda a realidade.

Os Estados Unidos usa muito esse sistema para alavancar suas decisões de guerra e domínio. Um exemplo claro disso - contemporâneo - foi a informação de que o Iraque tinha armas químicas e estava pronto para usar. Especialistas viralizaram a informação, inclusive com "fotos" dos lugares onde estavam armazenadas as supostas armas. E o mundo inteiro acreditou. Lá se foram então os soldados para derrubar Sadam, o sanguinário. Tempos depois, bem depois, os próprios especialistas que denunciaram as armas químicas revelaram que não havia arma alguma. Mas, já não importava. Sadam tinha sido derrubado, o Iraque invadido e a vida naquele país já tinha se transformado num novo inferno, tão cruel ou mais do que havia no governo de Sadam.

Hoje, com as redes sociais, esse efeito cascata potencializou. O que entrava na vida das pessoas apenas pelo rádio ou televisão, agora entra também no cotidiano das redes. E a mentira passou a ser prato da casa. Fica então difícil demais mover-se nesse universo e também na vida. O que é real? O que não é?

O filme Matrix - o primeiro - traz algumas respostas. Há várias versões da realidade. E, como diria Wittgenstein, "o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes". Conhecer e compreender a realidade requer esforço, trabalho braçal. Requer desgrudar a bunda da cadeira e caminhar nas ruas, na vida mesma, olhando as pessoas, falando com elas, percorrendo os recônditos das cidades, vasculhando os esgotos, os lixões, os apartamentos, as mansões. Há um operativo em curso, que hegemoniza as sociedades, há um sistema atuando, fortalecendo a histeria do medo, da violência, da negação do outro, da busca pelo prazer individual. Há tantas coisas para serem entendidas antes de sair condenando esse ou aquele por suas escolhas e atos.

Assim, o facebook , sendo esse espaço de mentiras e manipulação, deveras não me assusta. O que realmente me assusta é saber que ele é apenas espelho do mundo em que vivemos. Tanto que ali, vez ou outra também aparece a realidade real, a vida sem manipulação, o sentimento verdadeiro, o desejo de alteridade, de respeito e de amor. Mas, como na vida mesma, essas são coisas raras. E, como na vida mesma, temos de garimpar, medir, escrafunchar, com muito cuidado, para não cair na armadilha da matrix.

A humanidade, com tanto tempo de existência, parece mesmo não avançar. E os "felizes" seguem suas vidas, incapazes de perceber que há muito mais coisas no mundo do que suas Vans com vidros blindados.

* Elaine Tavares é jornalista.

Fonte: Revista Missões

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