Alfredo J. Gonçalves *
Dias atrás fiz aniversário, completei mais um ano de existência: já lá se vão algumas dezenas de primaveras, na linguagem humana; na linguagem divina, apenas um instante, um "sopro" de vida.
Naquele dia, em mias uma de minhas costumeiras insônias, levanto-me de madrugada e ponho-me a pensar comigo mesmo: como fazer da própria existência uma prece, uma oração!...
O que, a partir do presente, comporta duplo esforço: um olhar para trás, ao passado; e um olhar para frente, ao futuro. Retrospectivamente, se trata da tentativa de reavivar a memória; descobrir nas dobras deste pergaminho que é a história pessoal, as impressões digitais da mão invisível de Deus nesta travessia terrestre; quantas vezes, nos momentos cruciais, difíceis, nas situações-limite, Ele enviou seus anjos para enxugar minhas lágrimas, fazer-me levantar a cabeça, comer e beber algo, e retomar a marcha, "pois o caminho é longo"!...
Desse ato de garimpagem, resulta de um lado um sentimento de gratidão, e de outro um gesto de reverente oblação no altar da própria existência.
Do ponto de vista prospectivo, o horizonte se revela naturalmente mais nebuloso: não faltam medos e dúvidas, incertezas e interrogativos - tudo sem resposta! mas sorrateiramente uma imagem vai tomando corpo, faz-se viva e sugestiva.
Suponhamos um bloco de mármore, pedra bruta, informe, irregular: um empresário do ramo fará cálculos sobre o peso, a medida e a possiblidade de negócio, e, evidentemente, o quanto poderá render em dinheiro aquela "mercadoria"; o pedreiro, por sua vez, igualmente atento à própria profissão, põe-se a imaginar quantos metros quadrados de piso ela poderá cobrir; somente o escultor, porém, com seu olhar estético de artista e poeta,
será capaz de ver ali, naquele bloco inculto, pesado e disforme, o segredo da mais bela imagem de sua capacidade criativa.
A existência humana, em seus acontecimentos diversos e contraditórios, não deixa de ser uma espécie de matéria bruta, irregular e destituída de forma. A partir dela, é possível privilegiar um golpe de sorte e de fácil enriquecimento, uma profissão que garanta uma condição digna de vida e trabalho, ou, o que é mais raro, uma visão mística e sublime diante do mistério.
Desnecessário lembrar que as três vias são absolutamente legítimas, mas somente a última é capaz de, além de ter os pés firmes sobre a terra, sonhar e criar, erguer um voo ao ar livre, ao céu azul aos raios de um sol iluminador; capaz de despir a roupagem do verme para ganhar asas de borboleta, capaz de um olhar ao tesouro oculto na curta trajetória humana pela face da terra.
E somente a alquimia da oração pode realizar semelhante metamorfose. O caminho místico, espiritual, transfigura as pedras brutas das coisas e dos fatos: no caos e nas trevas primordiais, sabe identificar a chama viva da criação, com inusitada sensibilidade e delicadeza, descortina o véu do significado escondido, desvendando-lhe o sentido último e grávido de novas potencialidades.
Poeta, na verdade, não é tanto aquele que faz versos, organiza estrofes e compõe epopeias, mas sobretudo aquele que, da própria vida aparentemente informe, sabe fazer um poema! A atitude de oração, meditação, contemplação - fazem da existência o maior dos poemas!
Roma, 10 de março de 2015.
* Alfredo J. Gonçalves, SC, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos,
Fonte: Revista Missões