Anotações sobre a ideia de desenvolvimento e a perspectiva indígena

Elaine Tavares

A forma de conhecer o mundo é uma influência cabal na vida do ser humano. Vou contar uma história para ilustrar isso. Passei boa parte dos meus primeiros anos na casa do meu avô. Ele era agricultor. Arrendava terras, não era dono. O lugar onde ele morava tinha um rio, de onde saia a água para o arroz e também uma pequena sanga, onde minha avó e minha mãe lavavam a roupa. Aquela água era coisa sagrada. Sem ela, o mundo ruía, daí a preocupação do meu avô em não usar agrotóxicos ou venenos. Na comunidade onde ele vivia as coisas eram sempre feitas em mutirão. Se fosse necessário abrir uma estrada ou fazer uma cerca, vinha alguém, à cavalo, convocar toda a vizinhança para o trabalho no fim de semana. Um ajudava o outro, sem pestanejar. Matava-se um porco ou uma novilha, e tudo acabava em churrasco e jogo de pife. Mesmo que os agricultores vivessem a léguas de distância uns dos outros, eles se encontravam nesses domingos de trabalho e festa. Ou seja, ninguém pensava em contratar alguém, pagar pelo trabalho. Era uma comunidade. O que era hoje para um, amanhã seria para o outro. Na epistemologia indígena isso se chama equidade e redistribuição. Quando uma pessoa cresce praticando esses valores, dificilmente poderá entender a forma de vida de uma criança que nasce num condomínio, no qual as pessoas não se conhecem, que fecham as portas em desconfiança e onde cada um faz por si. E vice versa. São duas formas radicalmente diferentes de conhecer a realidade e, ou são reconhecidas como reais, como diz Enrique Dussel, ou provocam a confusão, in-compreensão, o não-diálogo.

Esse foi o ponto crucial no tempo da invasão dessas terras. Os brancos que aqui chegaram vinham em busca do ouro, riqueza, coisa que se transformaria em poder. Os que aqui viviam não davam ao ouro a mesma conotação. Era só um metal luzidio que servia para fazer adornos ou para seus apetrechos cerimoniais. Duas maneiras diferentes de conhecer as coisas. Nas comunidades indígenas se praticava a redistribuição, a equidade, o trabalho coletivo. Protegiam-se as viúvas, as crianças, os velhos, os incapacitados. Para eles, naqueles dias, a palavra "produção" não andava, não tinha sentido. Pelo menos não o sentido que era dado pelas sociedades coloniais. O trabalho produzido nas sociedades de Abya Yala tinha valor de uso. E quando havia excedente eram organizadas feiras para trocas. Com a chegada dos invasores, tudo muda. Eles iniciam um processo de rapinagem das riquezas, principalmente as minerais, o trabalho passa a ser de exploração ou escravo. Os conceitos indígenas são negados. É importada uma fé e um sistema de vida totalmente alheios e incompreensíveis. Mais tarde, já consolidado o "epistemicídio" no que diz respeito ao modo de conhecer indígena, consolida-se o modo de produção capitalista.

Com o capitalismo, Abya Yala fica subordinada às potências centrais. Passa a ser a periferia. Mesmo assim, ao longo dos séculos, as elites e os governantes locais acreditaram na possibilidade de introduzir o "desenvolvimento", sempre dentro dos marcos da modernidade. Progresso, submissão da natureza, aumento da produção.

Durante muito tempo as comunidades indígenas viveram oprimidas, algumas tentando se integrar ao mundo moderno, outras, procurando vivenciar seus valores em pequenas comunidades esquecidas e outras vivendo uma cisão epistêmica na tentativa de equilíbrio entre os seus valores e conhecimento e os dos homens brancos. Mas, aos poucos, quando parecia que tudo já estava liquidado, com os índios restantes limitados às reservas, teve início uma retomada do modo de ser indígena. Desde os anos 60 do século XX, organizações começaram a se constituir e realizar encontros de indígenas, estabelecendo algumas metas e definindo algumas estratégias de recuperação da cultura. O ano de 1990 foi paradigmático, quando indígenas equatorianos ocupam as igrejas de Quito exigindo direitos. Logo em seguida, em 1994, os indígenas da região de Chiapas, no México, se levantam em armas, na defesa de seu modo de vida e, a partir daí, o movimento indígena não para de crescer. Hoje, países como Bolívia e Equador, de maioria indígena, já conseguiram incorporar na própria Constituição os elementos da cultura originária. No Equador, os pressupostos do Sumak Causai (o bem-viver), e na Bolívia, o estado-plurinacional. E, tanto um como o outro passam a questionar a proposta de "desenvolvimento" que sempre esteve em voga, sendo defendida inclusive pela esquerda.

O desenvolvimento no contexto indígena

Falar de desenvolvimento nas comunidades indígenas exige de quem fala a utilização de uma outra episteme já que esse é um conceito que advém da ideia moderna de progresso, nascida no iluminismo. É uma proposta europeia, portanto, completamente ligada a uma filosofia que buscava sair do controle da palavra revelada (deus), para uma explicação etnocêntrica do mundo. A razão humana como medida de tudo, o "ego cogito" cartesiano, que inaugurou na Europa recém saída da Idade Média, a ideia de indivíduo.

Nas comunidades originárias de Abya Yala, a forma de conhecer nunca chegou nem perto da maneira moderna. Se para a Europa, a máxima era "penso, logo existo", para as comunidades que aqui vicejavam, a filosofia suleadora era "existo, logo sou comunidade". Sendo assim, a diferença entre os dois mundos é radical e não é sem razão que aparecia incognoscível para os europeus o jeito de viver indígena, bem como a maneira europeia não podia ser compreendida pelos locais. Não houve um encontro entre duas alteridades que se conhecem e se entendem. Houve uma conquista, na qual uma forma particular (europeia) de entender o mundo foi imposta a ferro e fogo.

O mundo colonial trouxe para Abya Yala os conceitos filosóficos da Europa. Como afirma o economista equatoriano Pablo Dávalos, a chamada "liberdade" moderna está sustentada na produção e o desenvolvimento aparece então como uma proposta de fim da escassez. Esse conceito se solidificou de tal maneira que ao longo dos tempos os países foram divididos entre os que eram desenvolvidos, os subdesenvolvidos e os em desenvolvimento. Por muito tempo, o sistema capitalista, que cresceu e se fortaleceu, incutiu a ideia de que só era subdesenvolvido aquele que não se esforçasse o suficiente. Assim, o subdesenvolvimento aparecia quase como uma maldição, principalmente nos países da América Latina e África que, no entendimento dos pensadores, abrigava uma gente preguiçosa e inútil. Eram pobres por incapacidade de pensar a produção.

Toda essa forma de conhecer o mundo criou, ao longo tempo, uma ciência específica para aprofundar a proposta de progresso. Muitas eram as receitas que chegavam dos países "desenvolvidos" para ajudar os subdesenvolvidos a avançarem e produzirem coisas capazes de serem vendidas e compradas, girando a roda do capital. Como lembra Pablo Dávalos, o sustentáculo dessa receitas sinistras é a insistência desesperada de crescimento do PIB, como se isso, por si só, desse conta de todos os problemas.

Desde a invasão até hoje, poucos foram os autores que se importaram em conhecer as propostas de bem viver dos povos indígenas. Mesmo Marx, que inaugura uma crítica radical do capitalismo segue apostando na ideia de que a visão de desenvolvimento se insere na totalidade do capitalismo e que as relações de produção se dão em nível mundial, logo, incluindo o mundo indígena. Em nenhum momento Marx abandona a ideia de progresso e desenvolvimento, embora admita que o modelo capitalista é, por natureza, responsável não só pela exploração do homem, mas também da natureza circundante. De qualquer sorte, Marx seguirá aceitando o conceito de que a natureza é algo fora do homem, que existe para ser transformada, modificada. O homem como senhor da natureza, dominando-a. Uma teoria que está quilômetros de distância da filosofia indígena.

Nos anos 60 pensadores de esquerda começam a apontar novas abordagens para a compreensão da realidade. Segundo eles, o chamado subdesenvolvimento não é uma maldição, pelo contrário, é a outra face da moeda do sistema capitalista. Só existem os subdesenvolvidos porque os desenvolvidos estão a sugar todas as riquezas. Assim, seria da natureza do capitalismo a existência da desigualdade. Mas, todos esses pensadores, Gunder Frank, Wallerstein, Braudel, Rui Mauro Marini, Samir Amin, Theotonio dos Santos, entre outros, ainda que apontassem para algum tipo de nova sociedade, com a superação da exploração, seguiam pensando desde os pressupostos da modernidade, insistindo em usar os mesmos supostos civilizatórios do desenvolvimento. Mesmo eles não abrem espaço na sua epistemologia para a alteridade, para o outro, diferente, mas real, que segue existindo em todos os espaços de Abya Yala, na África ou em outros espaços do mundo.

É muito comum na esquerda latino-americana a desqualificação dos discurso indígena, o qual chamam depreciativamente de "pachamamismo", em referência a Pacha Mama, divindade indígena que congrega a totalidade da terra. Nomes importantes como Atílio Borón se manifestam sobre isso, dizendo que os pachamamistas querem voltar ao passado, viver no atraso. Ou seja, mesmo os pensadores mais críticos do capitalismo não são capazes de pensar o mundo desde o olhar do outro. Não se dispõem a reconhecer que há outra forma de pensar a vida para além dos conceitos modernos, eurocêntricos. E, assim, seguem apostando no desenvolvimento, sem perceber que a alternativa ao subdesenvolvimento não pode ser o desenvolvimento, pois sendo assim seguiram na mesma lógica da modernidade e do capital. "O desenvolvimento é uma patologia da modernidade", diz Pablo Dávalos. É certo que existem alguns movimentos indígenas muito particularistas que até apontam uma volta ao passado e a não mistura com o homem branco, mas são muito poucos. A maioria sabe que 500 anos de encontro, ainda que forçado, com um modo de conhecer exógeno, não pode passar incólume. Como se pode ver, os indígenas não estão dispostos a um "epistemicídio", ao assassinato do modo de pensar branco. Eles aceitam que há outra forma de conhecer e pensar o mundo, e esperam verdadeiramente dialogar.

Outro elemento da luta indígena que é ridicularizado é a sua preocupação com o ambiente. Quando uma comunidade insiste em defender seu território de "obras de progresso", como a usina de Belo Monte, por exemplo, sempre surgem os comentários burlescos, piadistas, insistindo que os índios estão querendo impedir o "desenvolvimento", apenas para salvar alguns quatis. E isso se vê na esquerda também. Ora, há que entender profundamente o conceito de natureza para uma comunidade antiga. Não se trata de proteger o mico-leão dourado para o deleite do humano. É que a natureza é parte da vida , está simbioticamente ligada ao modo de ser do índio. Um não-índio compra um terreno de 360 metros quadrados e pode ali fazer sua casa, comprar suas comodidades e até se dar ao luxo de plantar algumas árvores, uns vasos de especiarias. E aí está dada sua relação com a natureza. Para o indígena não. O território é o espaço da vida mesma, da comunidade, não pode se reduzir a 360 metros quadrados. No território estão todas as coisas que ele precisa para viver.

Um trabalho realizado por um jovem Kaigang do Rio Grande do Sul, Josué Candido Fotunato, sobre o uso de plantas medicinais na comunidade, mostra claramente como o território e a natureza que o compõe, são vitais à vida. Das 24 espécies de plantas que servem para curar, 16 são árvores. Árvores, não plantinhas. Árvores de anos e anos de existência. Sem elas, o modo de vida kaigang se perde. Esse é o entendimento que se precisa ter. No mundo branco, o homem domina a natureza, no mundo indígena não há relação de dominação, um depende do outro, é equilíbrio.

Por isso quando uma comunidade indígena se opõe ao "desenvolvimento", como foi o caso das comunidades do TIPNIS, na Bolívia, o dos Shuar, no Equador ou os Guarani, no Morro dos Cavalos, há que mirar a realidade desde o ponto de vista indígena. Uma estrada de alta velocidade passar por dentro de um parque nacional sagrado aos bolivianos impacta de maneira absurda a vida dessas comunidades. Ou a mineração a céu aberto na região Shuar, poluindo os rios onde nascem os deuses. Ou a BR 101 no meio da aldeia Guarani, desmontando todo um modo de ser. Não compreender isso é não ser capaz de viver na alteridade. Se com os filósofos da modernidade a natureza é retirada da história, os povos indígenas a reintroduzem outra vez, mas não como força produtiva, e sim como um elemento que é inerente ao social.

Mas, não é só a natureza que tem outro papel na vida dos povos indígenas, o tempo indígena também difere radicalmente do branco, é circular, não linear. O ser é comunitário e a economia está visceralmente ligada com a política. Não compreender isso pode até ser admitido. Mas, o que não se pode é querer destruir o outro só porque sua forma de ver o mundo e de conhecer é diferente. Desde 1492, as potências coloniais e imperialistas tem cometido sistematicamente o "epistemicídio". Negando outras maneiras de conhecer.

Por exemplo. Para um teórico do desenvolvimento, ainda que de esquerda, a experiência zapatista, no México, pode ser vista como uma experiência fracassada. Mesmo tendo se alçado em armas e mantido uma paz armada por mais de 20 anos, os índios de Chiapas seguem sua vida como sempre viveram. Pobres, pés descalços, enfrentando a polícia. Mas, eles não abriram mão de suas formas de organizar a vida. Criaram seus municípios autônomos, têm sua própria justiça. Não querem entrar na cidade do México e tomar a cadeira presidencial. Querem seguir vivendo comunitariamente. Não estão preocupados com a produção, com o lucro ou o PIB. Fracassados? Não. Apenas querem viver do seu jeito. Têm direito à isso. Estão conectados a outra forma de conhecer e de produzir. O que não significa estarem no atraso ou não usufruírem das melhorias tecnológicas criadas com o sacrifício de todos nós.

Outro exemplo, não-índio, mas de caráter socialista, é o MST. Mesmo tendo como base uma população rural, que carrega em si valores como aqueles descritos no início desse texto, de cooperação, de redistribuição, não tem sido fácil para o movimento garantir a produção coletiva e a proposta de outra forma de organizar a vida. Para muitos, senão a maioria, apesar de toda a proposta de ocupar o latifúndio e acabar com a concentração de terra, socializando as riquezas, o desejo segue sendo o de estar conectado na disputa de mercado. Ou seja, a manutenção da lógica moderna e eurocêntrica de progresso e desenvolvimento. Ainda que o discurso seja de avançar para o socialismo, esses movimentos ainda não conseguiram pensar uma forma de atuar que fuja do modelo desenvolvimentista, típico da modernidade europeia. É certo que não é fácil estar no capitalismo e encontrar brechas dentro dele. Mas, o mínimo que podemos fazer é procurar discutir os conceitos que nos movem.

No âmbito urbano temos aqui próximo de nós, agora na cidade de Águas Mornas, o exemplo da Comuna Amarildo, que também busca um espaço de produção, ainda que consiga agregar elementos de uma proposta mais integradora, de autogestão, de equilíbrio e de autossustentação. E por quê? Porque boa parte dos seus integrantes vem do campo, onde a lógica de organização é diferente e o processo de conhecer a realidade também. Mesmo pensando na proposta de agro vilas, também disputando o espaço da produção, eles estão mais preocupados em se autossustentar. Já é um avanço e pode vir a ser uma proposta inovadora.

O discurso moderno de desenvolvimento não dá espaço para a alteridade. Sabemos que muitas experiências indígenas e outras não-indígenas de caráter socialista são propostas que coexistem dentro do capitalismo, mas é inegável que se assentam em outra epistemologia. Por que tripudiar disso? Por que não aceitar que existem outras formas de conhecer? Esse é o desafio que está colocado para todos nós.

O fato é que o tempo passa, as lutas se sucedem, mas a sociedade latino-americana que tem como herança esse colonialismo mental, parece incapaz de conviver com o diferente. Tanto que são capazes de criar novos conceitos - dúbios e mentirosos - para manter o barco do estado no rumo do "desenvolvimento" capitalista. Um exemplo concreto disso pode-se perceber nos chamados novos governos progressistas da América Latina. No Equador, o presidente Rafael Correa cunhou o que chama de "neoextrativismo social", que nada mais é do que usar a velha lógica de rapinar riquezas naturais, só que com a argumentação de que isso vai servir para a melhoria da vida dos pobres. Assim, tem insistido em ocupar territórios indígenas para a extração de petróleo e também para a mineração. Os protestos das comunidades indígenas são tripudiados e o governo acaba colocando a população não-índia contra eles, porque estariam impedindo o progresso e a melhoria nas políticas públicas.

Uma pesquisa realizada pelo economista Pablo Dávalos revela que no chamado neoextrativismo de Rafael Correa realmente houve um maior controle do Estado sobre as riquezas naturais e muito mais recurso foi repassado para a política social. Mas, observando os números, ele comprovou que os recursos utilizados pelo governo nas políticas sociais não vêm do extrativismo e sim dos impostos gerais. A renda do extrativismo tem sido usada para o bem do próprio negócio, em estradas, construção de portos e aeroportos. E o que sobra, vai para os bancos. Ou seja, as comunidades estão sendo despojadas de seus territórios, os movimentos estão sendo criminalizados e quem está lucrando mesmo são os empresários. Logo, não são os índios que estão travando o progresso e o desenvolvimento. É o povo, através dos impostos, que custeia as políticas públicas e não há qualquer confronto com o capitalismo. Assim, mesmo num país onde a maioria é indígena, não há efetivo respeito ao mundo cultural, simbólico e epistêmico dessas comunidades.

Para finalizar o que se pode dizer é que seria necessário um longo processo de estudos que levasse a compreensão básica sobre o fato de que há várias formas de se pensar o mundo e que o mínimo que se pode fazer é entendê-las e respeitá-las. Garantir que essas formas alterativas existam é um começo.

* Elaine Tavares é jornalista.

Fonte: Revista Missões

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