Carolina Fasolo
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), instância máxima do Tribunal, decidiu, por unanimidade, negar recurso em um mandado de segurança que pretendia anular a demarcação da Terra Indígena Yvy Katu, em Mato Grosso do Sul, onde vivem cerca de cinco mil Guarani Ñandeva. A íntegra do acórdão pode ser acessada aqui.
O agravo regimental interposto no Supremo pedia a suspensão do processo administrativo de demarcação da TI Yvy Katu, que tramita desde 1982, e também a nulidade da Portaria 1.289/2005 do Ministério da Justiça, que declarou como de posse permanente dos indígenas a área de 9.494 hectares, localizada entre os municípios de Japorã e Iguatemi - fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. O ministro e relator Ricardo Lewandowski, reiterou suas decisões anteriores, de 2009 e 2010, quando o mesmo mandado foi negado pela 1ª Turma do STF.
Interposto por Pedro Fernandes Neto, proprietário da fazenda São Jorge, uma das 14 propriedades incidentes sobre a TI, o agravo enunciava que a demarcação da área "não se amolda no conceito de ocupação tradicional" e que "não se pode ampliar reserva indígena já demarcada", sustentando que tal preceito, estabelecido pelo STF como condicionante nos autos do caso ‘Raposa Serra do Sol' (Petição 3388/RR), deve servir de "parâmetro para a apreciação das ações que tratem de demarcação de terras indígenas".
O STF entendeu que a parte autora, para alegar que as terras não estão caracterizadas como de posse tradicional indígena, deveria apresentar provas, o que não é possível por meio de mandado de segurança. Sobre a impossibilidade de ampliação de TI já demarcada, o Supremo citou a definição do próprio Plenário, que após o julgamento dos embargos de declaração do caso ‘Raposa Serra do Sol', em outubro de 2013, estabeleceu que a decisão fosse "desprovida de força vinculante", ou seja, as condicionantes não podem ser aplicadas a outros procedimentos de demarcação de terras indígenas.
Um parecer da Procuradoria Geral da República ainda foi destacado na decisão do Supremo: "[...] a condicionante firmada no caso específico da Raposa Serra do Sol, [...] veio atrelada a todo um conjunto de elementos examinados naquela ocasião e não poderá ser aplicada, indistintamente, a casos e contextos diversos. [...] a condicionante não cabe nas hipóteses, recorrentes, em que há vícios ou erros na demarcação originária prejudiciais aos indígenas e que não refletem bem a ocupação tradicional - tendo-se em mente, inclusive, os casos de expropriação forçada -, sob pena de instituição de evidente ‘proibição de avanço' em matéria de proteção do direito das populações indígenas às suas terras."
Longa luta pela terra
Os Guarani Ñandeva de Yvy Katu aguardam há 32 anos a conclusão do procedimento demarcatório de seu Tekohá, de onde foram expulsos em 1928 e de lá enviados, junto com outras comunidades do sul do estado, para a Reserva Indígena Porto Lindo, uma das 8 diminutas áreas criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) no início do século XX para confinar os indígenas e assim liberar o território para viabilizar a distribuição, pelo governo, de títulos de propriedade aos colonizadores do estado.
Em 1982 a Fundação Nacional do Índio (Funai ) iniciou os estudos para a demarcação, interrompida diversas vezes por recursos judiciais. Na tentativa de acelerar o processo, a comunidade retomou seu Tekoha em 2003. Porém, com 14 pedidos de reintegração de posse ajuizados contra os indígenas, a Justiça determinou que ficassem em apenas 10% da área reivindicada até que o processo demarcatório fosse finalizado.
"Esperamos 10 anos ali naquele pedacinho e a Justiça não resolveu nada... A gente bebia água da represa, a mesma que o gado do fazendeiro bebia e fazia suas necessidades. As crianças sempre com diarréia, vômito. Não dava pra viver todo mundo ali, não tinha como plantar e nem fazer nada", lembra a liderança da comunidade, Leila Guarani.
Em 2005, quando foi publicada pelo Ministério da Justiça a Portaria Declaratória que reconheceu os 9.494 hectares como de posse permanente dos indígenas, os proprietários buscaram em todas as instâncias judiciais sua extinção, mas nunca obtiveram sucesso. Em março de 2013 a Justiça considerou nulos os títulos de propriedade incidentes sobre a Terra Indígena Yvy Katu, atestando a validade do processo demarcatório da área.
Depois de 10 anos encurralados num pequeno espaço de seu território, os Guarani Ñandeva decidiram retomar seu Tekohá. "Voltamos pra cá no dia 14 de outubro de 2013 e não vamos mais sair da nossa terra, porque pertence a nós. Por quase 100 anos o ruralista ocupou nossa terra, destruiu nossa mata e acabou com os remédios tradicionais... Ele já ganhou muito dinheiro aqui, criou e engordou o gado dele. Todo o valor que a gente tinha nós perdemos. Perdemos tudo, mas agora estamos lutando pra recuperar nossa mata de novo", conta Leila Guarani, reforçando que irão resistir a qualquer tentativa de despejo.
Dos 14 processos de reintegração de posse ajuizados na área, nove já foram extintos pela Justiça. "O fato de as terras terem sido esbulhadas dos indígenas pelo próprio Estado não esvazia o direito destes de terem restituídas suas terras", esclarece uma das sentenças judiciais que validou o procedimento demarcatório.
A comunidade espera há nove anos a homologação da terra e, mesmo com o território reconhecido judicialmente, inclusive com a demarcação física, os órgãos responsáveis se furtam do dever de prestar assistência aos indígenas. A água que são obrigados a consumir, suja e contaminada, vem da mesma represa que o gado utilizava. Leila conta que a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) chegou a visitar a aldeia "mas falaram pra mim que não dá pra colocar água pra nós, porque a terra não foi homologada. Escola aqui dentro do Yvy Katu não tem, também dizem que só depois da homologação. Mas a gente precisa de uma escola agora, de um posto de saúde aqui dentro, precisa pra agora... Eu não sei por que ta demorando essa homologação".
Fonte: CIMI