Alfredo J. Gonçalves *
A notícia choca pelos números: nos últimos três dias, próximo às costas da Líbia, no lado africano do mar Mediterrâneo, cerca de 600 migrantes morreram afogados em mais um grande naufrágio (talvez o maior dos últimos anos). Outras vítimas podem ter desaparecido, apenas uns poucos conseguiram sobreviver. Entre os mortos, predominavam jovens de ambos os sexos e não poucas crianças. Devolvidos pelas águas do mar, os corpos se estendiam pela praia, numa visão trágica de quem se vê forçado a arriscar tudo para fugir da pobreza e da violência, buscando um lugar ao sol.
Os números chocam e vão se acumulando dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano. Na tentativa de alcançar os países europeus, e ali replantar suas esperanças e lutas, barcaças apinhadas de novos migrantes, prófugos e refugiados continuam a arriscar a travessia. Cada uma delas, pela sua fragilidade e lotação, mais parece uma casca de noz sobre as águas ameaçadoras. Em tais condições precárias, não é difícil o naufrágio e a tragédia. Desnecessário dizer que, por trás dos números anônimos, exitem rostos, nomes e sobrenomes, famílias golpeadas pela separação e sonhos quebrados, irremediavelmente diluídos no mar da deilusão e da morte.
Três observações preocupantes. A primeira refere-se à "operazione mare nostrum" (operação nosso mar), posta em ação pelo Ministério da Defesa italiano. Teoricamente, trata-se de uma "operação militar e humanitária" para salvar o maior número de pessoas que se aventuram nessa arriscada travessia. O problema é que somente agora, e de forma tíbia e tímida, algumas outras nações europeias se deram conta que a fronteira do Mediterrâneo (entre África e Europa) não confina apenas os países do sul do velho continente, mas o continente como um todo. Numa palavra, ou todos os Estados assumem conjuntamente esse drama humano, ou as tragédias devem continuar. Assassinas não são as águas, e sim a indiferença e o tráfico humano.
O segundo comentário tem a ver justamente com esse tráfico humano e a formação de "máfias" em torno dessa fonte de renda. Os traficantes aproveitam-se da vulnerabilidade dos fugitivos da guerra e da miséria - provenientes particularmente da Síria, Etiópia, Líbia, bem como de países mais distantes da África-subsaariana e da Ásia - para extorquir-lhes os últimos recursos em dinheiro e energias, prometendo-lhes o Eldorado do outro lado do mar. Verdadeiros "mercadores de carne humana", como dizia o bispo João B. Scalabrini, "pai e apóstolo dos migrantes", referindo-se à histórica emigração dos italianos no final do século XIX e início do século XX em direção às Américas e Austrália. Além da extorsão e das falsas promessas, são eles, os traficantes, que amontoam os migrantes nessas frágeis embarcações, particamente enviando-os para o abismo inevitável (e previsível).
Em terceiro lugar, por parte da grande mídia, da opinião pública e da população das ruas, verifica-se o risco crescente de "naturalizar" semelhantes tragédias. Aparecem com tanta frequência nas páginas dos jornais e nas imagens dos telejornais, que nos acostumamos a interpretá-las como uma simples notícia. Uma notícia a mais entre tantas outras. Gradualmente, sem nos darmos conta, tornam-se parte do noticiário "normal". E às vezes, diante dos corpos boiando sem vida na superfície das águas, os comentários não deixam dúvidas quanto a essa fria visão à distância: "Olha, morreu mais um punhado de migrantes!... Ouvi no rádio que recolhiam os cadávres da praia... A TV mostrou as imagens... Bem, eram migrantes, extra-comunitários"!
Não raro, o impacto se neutraliza: tudo normal, natural... Que se pode fazer? E aqui permanece vivo e interpelador o desafio lançado pelo Papa Francisco, de "passar de uma cultura da indiferença a uma cultura da solidariedade".
Roma, Itália, 16 de setembro de 2014
* Alfredo J. Gonçalves, CS, é Conselheiro e Vigário Geral dos Missionários de São Carlos..
Fonte: Revista Missões