Guatemaltecos lembram Dom Gerardi, 'combatente da paz'

Hélio Pedroso

No pátio atrás da catedral da cidade da Guatemala, comemorava-se o quarto aniversário do assassinato de dom Juan Gerardi Conedera, oportunidade também para lembrar todos os mártires da guerra civil que durou 36 anos. As mulheres indígenas, vindas das montanhas, quiseram lembrar os maridos, os pais, os filhos que, um dia, foram levados de casa pelo exército ou pelos paramilitares e nunca mais voltaram ou foram ferozmente liquidados sob os olhos dos familiares.

A acusação era sempre a mesma: guerrilheiro ou colaboracionista. Interrogatórios e processos regulares nunca existiram. Mas os mortos foram mais de 200 mil, em sua maioria indígenas das montanhas, relutantes às imposições do governo. Até agora, ninguém pagou por esse genocídio, nem pelas torturas, nem pelas valas comuns dos cemitérios clandestinos. Aliás, quem pagou com sua vida foram aqueles que procuravam elucidar os fatos. Foi o caso de dom Gerardi, bispo auxiliar da Cidade de Guatemala.

DOM GERARDI, MÁRTIR DA JUSTIÇA E LIBERDADE

D. Gerardi
No dia 24 de abril de 1998, dois dias antes de ser massacrado com um bloco de cimento, o bispo tinha apresentado o resultado de três anos de trabalho da Odhag - Secretaria dos Direitos Humanos da Diocese - em colaboração com outras Ongs, coordenadas pelo Projeto Rehmi (Recuperação da memória histórica: Guatemala nunca mais).

O volume recolhia testemunhos de civis e militares, relatando detalhadamente as violências sobre as populações civis cometidas pelo exército e paramilitares das Pac (patrulhas de autodefesa civil). Abria-se assim um caminho para denúncias e processos. Um caminho, porém, que nunca foi percorrido. Há muitos interesses e convivências em jogo nos altos escalões do país.

A Odhag, como explica Nery Rodenas, diretor da Secretaria, atua em várias frentes. Um setor é o "da cultura de paz e conciliação", que faz um trabalho de mediação dos conflitos. De fato, a guerra deixou divisões, suspeitas, ódios e vinganças dentro das comunidades.

Uma equipe de psicólogos coordena as atividades da área "saúde mental" que se ocupa das feridas interiores deixadas pelo conflito. Há o setor de investigação que procura descobrir os autores dos massacres. Até a presente data, foram condenados somente os assassinos de dom Gerardi (três militares e um sacerdote), mas ainda não se descobriu quem foram os mandantes. A Secretaria está tentando e procurando exumar os mortos nas dezenas de cemitérios clandestinos que já foram localizados nos últimos anos.

Crianças com trajes tradicionais em Panajachel
"Alguém gostaria que os mortos fossem deixados em paz onde estiverem, mas a Odhag acha que é fundamental reconstruir a memória do que aconteceu na Guatemala e também dar uma resposta às pessoas que, há anos, esperam notícias de parentes que desapareceram". Esse trabalho corajoso incomoda muitas pessoas e a Odhag, seus funcionários e outras Ongs, já sofreram ameaças, invasões noturnas com destruição de material e computadores e ainda incêndios dolosos.

Nos últimos anos, foram mortos 19 operadores, compromissados com a defesa dos direitos humanos e outros 125 foram violentamente ameaçados. Isso preocupa até a ONU que, em maio, enviou à Guatemala, uma defensora dos direitos humanos, a paquistanesa Hina Jilani. A Organização também denunciou a militarização da sociedade guatemalteca. Exemplo disso foi que, no ano passado, foram orçados 104 milhões de dólares para o exército, mas após pressões dos militares, os recursos foram aumentados para 190 milhões, numa clara violação dos acordos de paz que impunham uma redução de todo o aparato militar.

ESTÃO VOLTANDO OS FANTASMAS DO PASSADO?

"O problema fundamental - continua Rodenas - é que a sociedade guatemalteca permanece uma sociedade injusta, os acordos foram esquecidos, os indígenas continuam marginalizados, a riqueza se concentra nas mãos de poucos, o exército aumentou seus poderes, inclusive políticos, e se opõe a que se esclareça o passado".

Rigoberta Menchu, líder indígena e Prêmio Nobel da Paz de 1992
Prêmio Nobel da Paz, Rigoberta Menchu, está refugiada no México devido às continuas ameaças de morte recebidas na Guatemala. Recentemente, outros assassinatos, como o de Guilhermo Ovalle, 28 anos, administrador da fundação Rigoberta Menchu, trouxe à tona antigos fantasmas.

Apesar das pressões, as entidades de defesa dos direitos humanos trabalham para que os indígenas possam ter seus direitos reconhecidos, promovendo uma cultura de paz e de desenvolvimento sustentável. Mas tudo isso é árduo e difícil, porque muitos indígenas não conhecem seus direitos e, dos 365 municípios guatemaltecos, 102 encontram-se numa situação de extrema pobreza.

UM PARAÍSO DEPAUPERADO

A pobreza é a característica da Guatemala de hoje e mostra a sua pior face nas zonas urbanas, especialmente na capital. Diante da falência das comunidades rurais, a população urbana precipitou numa miséria que não demonstra sinais de saída a não ser a emigração e a delinqüência. Infelizmente, existe ainda uma terceira via, a mais trágica: o suicídio, que se tornou muito comum diante da falta de perspectivas e do acúmulo de dívidas.

De outro lado, nas mesmas cidades, existem lugares de ostensivo luxo, reservados a poucos, que nada ficam devendo às metrópoles do Primeiro Mundo: hotéis luxuosos das grandes cadeias internacionais, fast food, locais noturnos e butiques das melhores marcas. Tudo vigiado por guardas fortemente armados e controlado por 9 famílias que dominam toda a riqueza da Guatemala. Essas ilhas de luxo escandaloso, dentro de um mar de miséria, são crimes sociais.

 

 

Fonte: www.pime.org.br

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