Aposentadoria precoce da Vida Religiosa?

José Lisboa Moreira de Oliveira *

Tempos atrás li um artigo muito interessante do padre Alfredinho Gonçalves que falava da aposentadoria precoce da Vida Religiosa. Padre Alfredinho chamava a nossa atenção para o fato de que muitos frades e freiras estão abandonando as fronteiras da missão e passando a viver uma vida cômoda e quase parasitária. Não querem mais estar na linha de frente, nos territórios de missão, nas periferias do campo e da cidade, nos ambientes insalubres e assim por diante. Querem uma vida mais tranquila, mais parada, mais inerte e buscam lugares onde seja possível formar um círculo de amigos para se comunicar com eles de forma virtual pelo Facebook, pelo Twitter, pelo MSN etc., mesmo quando o amigo está no computador ao lado.

Segundo padre Alfredinho, as causas desse envelhecimento precoce seriam duas: a falta de uma intimidade com Deus e a ausência de uma vida fraterna em comunidade. Não haveria mais na Vida Religiosa uma espiritualidade profunda, capaz de sacudir as pessoas e de impulsioná-las para a missão. Uma espiritualidade como aquela experimentada pelos discípulos de Emaús. Além disso, faltaria, segundo padre Alfredinho, a vida fraterna em comunidade. Existem na Vida Religiosa comunidades, pessoas agrupadas, mas não existe a verdadeira experiência de vida fraterna, entendida como encontro de pessoas convocadas e reunidas pela Trindade.

Com certeza a "aposentadoria precoce" é um fenômeno bem característico de nosso tempo e não atinge somente a Vida Religiosa. Filósofos como Vattimo e Bauman há muitos anos vêm nos falando disso. Para eles o sujeito pós-moderno é um "homo debilis", ou seja, um ser muito fraco, sem disposição, sem garra, alguém que já nasce cansado e entediado. Falta-lhe vontade de viver, de pensar e de agir. O máximo que ele consegue fazer é curtir o momento presente de forma banal, superficial e medíocre. Neste contexto de sociedade do "controle remoto" as pessoas não têm disposição para nada e pretendem obter o máximo de resultados com o mínimo de esforço possível.

Sendo um fenômeno da cultura pós-moderna, a aposentadoria precoce termina afetando também a Vida Religiosa. Esta, por sua vez, tem muita dificuldade para viver no mundo real e para dar-se conta do que realmente acontece. Não consegue inculturar-se e acompanhar os tempos e os jovens que chegam às casas de formação. Por esse motivo não planeja ações educativas eficazes, capazes de contribuir para que a juventude reelabore as experiências pós-modernas e possam se inserir plenamente no ambiente desafiador da missão.

No meu entender, o padre Alfredinho, em suas reflexões, se esqueceu de apontar a verdadeira causa que está por trás de tudo isso. Não há dúvidas de que falta à Vida Religiosa atual uma verdadeira e profunda espiritualidade, entendida como experiência de intimidade com o Deus de Jesus Cristo que age na história por meio do seu Espírito. Não há dúvidas de que as comunidades religiosas, hoje, na sua quase totalidade, se tornaram meros hotéis onde pessoas individualistas dormem, recitam mecanicamente certas orações e fazem algumas refeições juntas. Porém, os projetos são pessoais, na maioria das vezes sem nenhuma relação direta com a missão da Igreja, da Vida Religiosa e do Instituto.

Todavia, não podemos culpar apenas os indivíduos, como se eles não quisessem ter espiritualidade ou viver em comunidades fraternas. Por essa razão é preciso dizer que a causa principal da aposentadoria precoce da Vida Religiosa não está tanto nas pessoas, vistas singularmente, mas no sistema institucional completamente falido e ultrapassado que rege as congregações religiosas. Este sistema ainda tem a cara de Trento e, pior ainda, do espírito da Contrarreforma. Ele é inflexível, autoritário, burocrático, frio e trata as pessoas de vida consagrada como se elas fossem apenas objetos que podem ser manipulados. Está ainda pautada na obediência cega ao superior. Exemplo disso é o caso recente de um religioso que recebeu, via e-mail, a comunicação de sua transferência para outra comunidade. Não houve diálogo, entendimento e justificativa. Foi obrigado a transferir-se em nome da "santa obediência".

O "aggiornamento" tão querido pelo Vaticano II quase não aconteceu. A tão sonhada "refundação" da Vida Religiosa não passou de mais um chavão repetido até a exaustão na última década do século passado. Na quase totalidade dos casos as mudanças foram periféricas e não atingiram os alicerces da Vida Religiosa. Em alguns ambientes, como a América Latina e os Estados Unidos, por exemplo, tivemos tentativas sérias de mudanças, mas foram sufocadas pelos controles europeus, os quais não permitiram que a Vida Religiosa fosse realmente refundada.

Se por um lado o sistema ainda é tridentino, por outro ele é afetado violentamente pela mentalidade pós-moderna. A diminuição de membros, o aumento de atividades, o envelhecimento das pessoas fizeram com que esse sistema, mesmo rígido, admitisse em seu meio sujeitos pós-modernos, prometendo-lhes muitas vantagens. Temos assim configurada uma verdadeira esquizofrenia. O ritmo do sistema é pré-moderno, fechado, rigoroso, exigente, mas as pessoas que chegam são filhas do tempo, ou seja, pós-modernas, centradas no self, no mais absoluto individualismo. Isso gera uma enorme tensão, uma vez que aos jovens que chegam é cobrado um estilo de vida tridentino, mas eles não têm a necessária resistência para encarar um modelo de existência tão rígido. Em decorrência disso, ficam facilmente cansados e desistem. Não querem abandonar a Vida Religiosa porque ela lhes oferece muitas vantagens. Assim terminam ficando como parasitas, apenas sugando e desfrutando as benesses que uma Vida Religiosa aburguesada lhes possibilita.

A saída para esse impasse está na ousadia, na clareza da proposta, na opção pela inserção entre os pobres. Há no mundo de hoje jovens corajosos, buscando radicalidade, desejosos de se comprometerem com projetos sérios de justiça e solidariedade. Mas estes jovens não se sentem de estar dentro de um sistema religioso carcomido e arcaico, que, por sua vez, para manter-se inflado e numeroso, negocia até mesmo o inegociável. Há que se mudar o atual sistema da Vida Religiosa. Do contrário, ela desaparecerá em breve. A própria história da vida consagrada comprova isso. Afinal de contas este modelo de Vida Religiosa que temos não é essencial para a Igreja. Pode muito bem ser substituído por outras formas de seguimento de Cristo muito mais proféticas e muito mais atuais.

* José Lisboa Moreira de Oliveira é Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília[Autor de Viver os votos em tempos de Modernidade. Desafio para a Vida Religiosa, por Edições Loyola].

Fonte: www.adital.com.br

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