Ronaldo Lobo *
A festa de Pentecostes nos lembra a universalidade da Igreja.
Terminando o tempo pascal, a Igreja celebra a festa de Pentecostes, como diz o nome, às costas dos 50 dias da Páscoa. A celebração toma conta da Igreja e todo mundo volta a recordar os relatos de como o Espírito Santo, sem ofuscar Jesus de Nazaré, deu continuidade à sua obra. Inicia-se a era do Espírito Santo, o Santificador, que foi popularmente retratado como a pomba (Mc 1, 10), embora o pintor russo, Andrei Rublev, no seu famoso ícone A Trindade, o tenha imaginado como uma pessoa.
Celebramos liturgicamente este acontecimento como uma solenidade. O fato de que a Igreja nasceu neste dia, muitas vezes passa despercebido. Vêm à tona os símbolos como a pomba, as línguas de fogo, os sete dons, nove frutos, e assim por diante. Para a nossa reflexão, usaremos o texto do Evangelho do domingo de Pentecostes, ou seja, Jo 20, 19-23.
Contexto
No Evangelho de João as narrativas da ressurreição na forma de histórias contam as verdades da fé para fortalecer a comunidade joanina. Não estão escritos para provar nada, porque Jesus, na sua morte na cruz, já fora glorificado. O Ressuscitado aparece, chama-os mais uma vez e os envia em missão. Se no início da missão de Jesus o Espírito o empurrou à ação, fará o mesmo a este grupo. A missão, de agora em diante pertence somente a Ele! Vale a pena também lembrar o texto do livro dos Atos dos Apóstolos (At 2, 1-11), que é mais lido e lembrado neste dia, pela sua dramaticidade, encanto e certa magia. Embora os dois evangelistas falem da mesma festa, têm perspectivas diferentes. Se para João a vinda acontece no dia da Páscoa, ou seja, no dia da ressurreição do Senhor, para Lucas a vinda do Espírito Santo acontece no dia da festa de Pentecostes.
Lucas usa os símbolos do fogo (lembramos Moisés diante da sarça ardente em Dt 4, 24) e do vento (Elias que encontra Deus numa brisa suave) como símbolos da presença de Deus. A fala em línguas variadas aponta a presença do Evangelho nestes países quando o livro dos Atos fora escrito, entre os anos 65 e 75 d.C. A festa de Pentecostes é uma festa judaica-israelita citada muitas vezes na Sagrada Escritura (Ex 23, 14-17). Era chamada também de festa da colheita, festa das primícias da colheita do trigo ou festa das semanas (Ex 34, 22 e Nm 28, 26-31). Ganha importância mais tarde, no judaísmo tardio, quando associada à aliança feita no Monte Sinai, e a entrega da lei a Moisés, onde nasce a nova comunidade.
O evangelista Lucas faz uma releitura, ao relatar o evento em Atos, de uma nova aliança e nascimento de uma nova comunidade. Para o evangelista João, a vinda do Espírito acontece na tarde do mesmo dia da Ressurreição. A aparição do Ressuscitado aos discípulos era originariamente uma tradição independente que o redator recorda no seu relato. Era tarde, relata o autor, ou seja, entardecer, meio escuro e meio luz. Veja como ele brinca com as palavras e as imagens de luz e falta de luz! A notícia que Maria Madalena trouxe de madrugada não consegue surtir o efeito no grupo, e não dispersa o escuro da noite! O relato poderia trazer mais uma novidade. Os fiéis encontram o Senhor na tarde do primeiro dia, o dia do Senhor, ou seja, nos anos que o Evangelho de João fora escrito. Eles distanciaram-se do sábado dos judeus!
O medo e a paz
Os detalhes chamam a atenção de um leitor atento. O ambiente descrito é de medo, desânimo e confusão. O medo dos judeus (Jo 20, 19; 26) tem a ver com a perseguição, situação da comunidade cristã em relação à sinagoga ao fim do século. A paz tem um significado profundo na teologia de João, que é o dom do Ressuscitado. Logo, os discípulos alegram-se pela presença do Mestre. Repete-se a fórmula da paz. Este movimento de medo, paz e alegria aponta para uma realidade tensa, embora de contraste. A paz e a alegria contrastam com o medo do início, que desaparece. Jesus dá o Espírito Santo, soprando sobre os discípulos. O sopro tem um significado profundo de princípio dinâmico e ativo na Sagrada Escritura.
A ideia básica do verbo é o ar em movimento. Outros significados são: os quatro ventos que circundam o universo (Jr 49, 36), a respiração dos seres vivos (Is 42, 5). As conotações de sopro incluem a força (1Rs 10, 5), a coragem (Js 2, 11) e a esperança (Lm 4, 20). O fenômeno pode ser agressivo (Is 25, 4), ou irado (Jz 8, 3). Para o ser humano ele dá a vida (Jo 12, 10) e a consciência (Is 26, 9). O sopro nas mãos de Deus dá fôlego a toda criação. No fim, o sopro pode ser a personalidade do próprio Deus (Is 31, 3). Deus sopra nas narinas do ser humano o sopro da vida que o transforma em um ser vivo (Gn 2, 7). O profeta Ezequiel recebe a ordem diante do monte de ossos ressecados, sopra nestes cadáveres para que revivam (Ez 37, 9). Aí a importância do sopro de Jesus sobre os seus discípulos: há de comunicar-lhes uma nova vida.
A comunidade que seguiu Jesus de Nazaré passou por uma experiência extraordinária, estupenda e revolucionária. Todos sabiam que algo tinha tomado conta deles, mas não sabiam o que era. O Espírito os chama e os envia para a missão dentro e fora do povo de Israel. Devem continuar tais forças na vida da comunidade. Aqui não tem nada de mágico, mas relata como a força de Deus atua nas pessoas. Entre nós hoje, muitas vezes, o Pentecostes é visto com um entusiasmo extremo pelas lideranças, o que resulta em muitos perigos. Muitos têm mostrado atitudes legalistas, escrupulosas, farisaicas, outros são mórbidos, tristes e apáticos, o que justamente os torna contrários ao Espírito Santo, e podem negar a presença d'Ele na comunidade, porque são neuroses espirituais, destorcem a verdade, desfiguram o cotidiano e diminuem o ser humano, algo que o Espírito Santo não faz. Basta olhar os frutos que ele produz em quem crê (Gl 5, 22-23) para ver o cuidado que ele tem com o ser humano. A fala de Paulo na carta aos Efésios seria um bom início (Ef 3, 14-21). O saudoso papa João XXIII tem chamado o Concílio Vaticano II, um Novo Pentecostes da Igreja. É oportuno pensar nessa perspectiva, no ano em que celebramos os 50 anos da abertura deste grande evento.
* Ronaldo Lobo, svd, é mestre em Bíblia. Atualmente, formador no Seminário Verbo Divino em Toledo, PR. Publicado na revista Missões, N. 04 - maio de 2012.
Fonte: Revista Missões