Joaquim Gonçalves *
Aqui em Portugal, desde 2008 que a ressonância de duas palavras ocupa nossos ouvidos: crise e mercados. Não há dia nem noticiário de TV ou de jornal onde não se pronunciem ou escrevam essas palavras que mais se parecem com um veneno gerador de uma peste do que com uma esperança saudável de um futuro melhor. Quanta tinta já foi gasta nos noticiários e nos livros e quantas imagens continuam sendo projetadas e guardadas nos computadores ou nos arquivos para serem repetidas nas próximas oportunidades. Quem tiver uma visão global do sistema no qual nos sentimos encurralados, percebe que os meios de comunicação informam sobre realidade ou deformam-na conforme as conveniências deste o sistema perverso que se instalou nas empresas, nos governos, nas nações, e manipulam as cabeças cuspindo a palavra crise no rosto da massa anônima que teria consumido bens sem ter dinheiro suficiente para pagar créditos.
Embora nenhuma crise surja por si mesma, quase não se fala sobre os verdadeiros culpados desta situação. Ninguém fala sobre as injustiças que acabaram sendo transformadas em leis no corpo do sistema de créditos, de empréstimos, de juros, de dívidas e de fuga de capitais para as "ilhas" onde se tecem os jogos de milhões e milhões. Os governantes em geral, por interesse lucrativo ou por vaidade política e alguma projeção pessoal, aceitam contratos de empréstimos que o Estado geriu mal, os cidadãos não assinaram, mas vão ter que pagar a todo o custo. Os governantes que assinaram os documentos quando governavam, agora estão livres de qualquer compromisso. Outros fizeram guerras por interesses econômicos, como o Bush, e agora esfregam as mãos sem se sentirem culpados de nada. Com tantos gastos em despesas para realizar reuniões de governantes, as soluções que vemos são apenas adiamentos, emissão de sugestões, remendos novos em panos velhos. Ninguém ousa trocar de roupa. Os que ganharam com o sistema não querem mudanças estruturais que mexam com supostos direitos adquiridos que não são mais do que benefícios injustos. Enfim, parece que caímos num sistema inviolável, com o rosto sagrado de um deus eterno que teria inventado um único caminho de felicidade pelo qual todos teriam que passar: produzindo com pouco suor e gastando com o máximo de prazer.
A ideia da globalização parecia ser o caminho certo para fazer do mundo uma enorme mansão de felicidade. O mundo se abriu, mas as chaves de entrada e de saída para ter acesso à riqueza produzida ficaram nas mãos de poucos. Quem ficou com as chaves na mão institucionalizou o sistema de exploração, de produção e de comercialização de riquezas de tal modo que não houvesse riscos de perda para os donos das chaves. E quem tentar ameaçá-los vai ficar nu e passar fome porque o capital é volátil e há sempre quem queira se aproveitar da desgraça do outro.
O sistema desenvolvimentista moderno não nos teria arrastado para uma situação de crise deste tipo se tivesse pensado em construir a casa sobre a rocha e não sobre a areia. A Europa quis criar uma União seguindo o código do sistema e sonhando com um paraíso de liberdade, de fraternidade, de igualdade sem Deus, sem fé, sem transcendência, sem inferno e imaginado o céu verdadeiro ao pé da porta. O único inferno a ser ainda resolvido seria o prolongamento da vida sem passar pelo caixão. Agora a moda é a cremação para não ter que apodrecer. Mas esse sonho não removeu desigualdades e endeusou os mercados de capital com tanta liberdade que eles mesmos se apoderaram do poder dos políticos e dos governantes. A Europa promoveu uma sociedade baseada nos "direitos" e não na dignificação da vida das pessoas e da criação. Endeusou o consumo e manipulou de muitas formas a vida de toda a criação. A acumulação de riqueza precisava de mão de obra mais barata que veio da emigração.
Agora ninguém quer ousar desmontar o sistema porque não tem outro modelo que favoreça os ricos. Deixam os mais pobres, os trabalhadores, os pequenos empresários enchendo as ruas de carros; esperando pelos ônibus que não chegam, os comboios nas estações para viajar apertados nas horas de ponta.
Os países emergentes que estão copiando o mesmo sistema e dando-lhe esse tipo de consistência maléfica se acautelem, porque esse veneno vai chegar no seu âmbito rapidamente. Há que tomar um remédio preventivo. A atração de capitais de investimento de hoje se tornará a cadeia de escravidão de amanhã. Os Estados Unidos que são o responsável maior desta crise agora estão tentando servir-se da "crise na Europa" para amenizar as conseqüências da situação na sua própria casa. Se não mudarem de filosofia, os países emergentes sofrerão conseqüências mais graves do que as que vivemos hoje na Europa.
Onde estão os erros do sistema? Vou apenas levantar o pano que esconde alguns. O sistema explora a criação fazendo dela uma "madrasta", explorando, devastando, transportando; o sistema para poder produzir e competir envenena o ambiente, cria grandes volumes de lixo; o bem estar de uns e o respectivo prolongamento da vida tem o preço de abandono de outros que morrem à míngua. As promessas de recursos para socorrer países pobres em tempos de calamidades chegam ao destino na média de 10% como foi o caso do socorro ao Haiti após o terremoto. Para que alguns possam acumular maior capital e poder concorrer com os adversários, é preciso desviar das necessidades básicas de alguns os recursos para uma vida mais digna. O individualismo cria uma espécie de cegueira visual, afetiva e intelectual que não se resolve com guerras, competições, concorrências ou ameaças.
Somente quando nos convencermos que cada pessoa merece respeito e dignidade, podemos chegar à sabedoria, à paz e ao sentido de responsabilidade tão necessários para um serviço social, econômico, político que promovam a dignidade humana.
* Joaquim Gonçalves é missionário da Consolata em Portugal. Viveu e trabalhou também, por vários anos, em diversos lugares do Brasil.
Fonte: Revista Missões