Estêvão Raschietti *
O Quarto Evangelho, contrariamente aos três sinóticos - ou seja, similares - é o único que não fala da instituição da Eucaristia. Em seu lugar, conta que Jesus lava os pés dos discípulos (cf. Jo 13, 1-20), dá um pedaço de pão a Judas (cf. Jo 13, 21-32) e doa um mandamento novo, o do amor (cf. Jo 13, 33-35). Desta maneira, o autor ilustra o sentido da ceia do Senhor como verdadeiro núcleo fundamental da vida cristã. A narração do capítulo 13 de São João coloca-se bem no meio deste Evangelho, quase a revelar um certo significado central. Ela se presta a uma pluralidade de interpretações. Na tradição cristã, por exemplo, encontramos dois caminhos de compreensão. Alguns veem no gesto de lavar os pés um testemunho de entrega e de serviço ao outro. Outros colhem mais uma ação simbólico-sacramental de Jesus de cunho batismal e penitencial.
No entanto, essas duas interpretações não necessariamente se excluem. O que mais parece essencial nesse texto de João é que não há imagens para explicar a natureza de Jesus ("Eu sou o pão da vida" Jo 6, 35; "Eu sou a luz do mundo" Jo 9, 5; "Eu sou a porta das ovelhas" Jo 10, 7; "Eu sou o bom pastor" Jo 10, 14; "Eu sou a ressurreição e a vida" Jo 11, 25). Agora há um gesto concreto que expressa toda a realidade divina.
No Evangelho de Lucas, durante a última ceia, Jesus se define como aquele que serve: "Afinal, quem é o maior: aquele que está sentado à mesa, ou aquele que está servindo? Não é aquele que está sentado à mesa? Eu, porém, estou no meio de vocês como quem está servindo" (Lc 22, 27). Com o lava-pés Ele nos oferece um ícone vislumbrante dessa desconcertante novidade. O dele não é apenas um gesto de humildade: diz respeito diretamente à sua natureza divina. Eis o Deus que Jesus anuncia: a serviço da humanidade.
Alguns elementos da narração nos revelam a suma importância do gesto que Jesus cumpre. Primeiro, o acento do relato não cai simplesmente no gesto de lavar, mas de lavar os pés: é realçada a atitude humilde, a dinâmica de rebaixamento e o espírito de serviço. Um eventual sentido sacramental só pode ser secundário e deve ser considerado nesta primeira ótica da entrega ao outro.
Segundo, o Evangelho diz que Jesus "se levantou da mesa (...) e começou a lavar os pés dos discípulos" (Jo 13, 4-5). O gesto é cumprido não antes da ceia, mas, durante. Os convidados já estavam sentados à mesa: Jesus se levanta. Portanto, não se trata de um gesto de purificação que os judeus cumpriam antes das refeições: esse gesto é o centro da refeição d'Ele.
Terceiro elemento, Jesus "tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura" (Jo 13, 4). Ele se despe das vestes e se reveste com um avental: o traje do empregado. Este é o verdadeiro paramento de Jesus, que com a cruz assumirá de maneira definitiva. Quando retomará suas vestes (cf. Jo 13, 12) não tirará a toalha da cintura que ficará como a veste mais íntima. Mais uma vez, Jesus que lava os pés dos discípulos não manifesta apenas um gesto, mas uma revelação de um Deus que se torna servo dos seres humanos.
Por isso, na última ceia Jesus, "o Senhor", realiza um trabalho de escravos, a fim de que os escravos se sintam senhores. É o mesmo conceito expresso por Paulo quando declara que "por causa de vós se fez pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza" (2 Cor 8, 9). Lavando os pés dos discípulos, demonstra que a verdadeira grandeza não consiste em dominar, mas em servir os outros. Jesus, colocando-se no último lugar, não só não perde a dignidade, mas manifesta a verdadeira dignidade, a divina: "Eu, Iahweh, sou o primeiro, e com os últimos serei o mesmo" (Is 41, 4).
Além da revelação messiânica, o gesto de Jesus é lição para os discípulos. A comunidade cristã é convidada a empreender o caminho do serviço: "Eu lhes dei um exemplo: vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz" (Jo 13, 15). Essas palavras de Jesus interpretam as palavras da instituição da Eucaristia: "fazei isto em memória de mim". "Fazei isto" equivale a: "vocês devem fazer a mesma coisa que eu fiz"; "em memória de mim" corresponde a: "eu lhes dei um exemplo". Eucaristia não é simplesmente um rito, mas uma vida concreta: fazemos memória do que Ele fez para nós, vivendo nós também como Ele.
Sacerdócio
Essa é a Boa Nova que anuncia uma visão completamente nova de Deus. Jesus "Sacerdote" (cf. Hb 5, 5-6) nos apresenta um Deus que não pede sacrifícios: ele se sacrifica por nós. Não pede oferendas: ele oferece a própria vida. Não tira o pão da boca dos pobres: ele se torna pão para saciar multidões. Não quer ser servido: ele se faz servo.
É uma inversão de compreensão que revela a verdadeira natureza de Deus. Deus é amor, Deus é dom. Toda religião ensinava que a tarefa principal do homem era servir seu Deus (cf. Dt 13, 5): um Deus apresentado como soberano exigentíssimo, que conti-
nuamente pedia aos homens um serviço que era prestado principalmente através do culto. O Deus de Jesus não se comporta como um soberano, mas como um servo dos homens. Com Jesus, o homem não está mais a serviço de Deus, mas é Deus que está a serviço dos homens.
Por isso, a prática de Jesus é uma contínua aproximação aos pobres e aos outros para servir-los e libertá-los das amarras da opressão da Lei, do preconceito, da exclusão, do domínio, para oferecer-lhes uma vida melhor: isso acontece com paralíticos (cf. Jo 5, 1-18), cegos (cf. Jo 9, 1-34), leprosos (cf. Lc 17, 11-19), endemoniados (cf. Mc 5, 1-20); mulheres prostitutas, impuras, adúlteras, pagãs (cf. Lc 7, 36-50; 8, 43-48; Jo 8, 1-11; Mc 7, 24-30), cobradores de impostos (cf. Lc 19, 1-10), fariseus (cf. Jo 3, 1-15) e romanos opressores (cf. Mt 8, 5-13).
Assim como Jesus revela outra imagem de Deus, Ele apresenta também outra maneira de ser sacerdote. O sacerdócio de Jesus - mediação entre Deus e a humanidade - não consiste no afastamento ou na separação da vida do povo. Muito pelo contrário, se expressa na profunda proximidade e solidariedade com todo ser humano. Não se trata de um cargo que distancia ou de uma dignidade com funções próprias, mas de uma vida partilhada, de uma compaixão com toda situação humana e de uma firme adesão ao projeto de Deus. A dimensão sacerdotal do ministério de Jesus - que nunca recebeu o título de sacerdote em sua vida - consistiu em eliminar obstáculos para que Deus se aproxime finalmente para dar vida a todo ser humano. Essa solidariedade essencial é traço característico da Carta aos Hebreus, o livro do Novo Testamento que trata exatamente do sacerdócio de Jesus: "uma vez que os filhos têm todos em comum a carne e o sangue, Jesus também assumiu uma carne como a deles. (...) Ele não veio para ajudar os anjos, e sim para ajudar a descendência de Abraão" (Hb 2, 14.16). Por sua vez, todo discípulo de Jesus é chamado pelo batismo a tornar-se como Ele: sacerdote junto à humanidade, aquele que derruba barreiras e leva o amor de Deus a toda pessoa e a todos os povos. Se alguém na comunidade dos discípulos e discípulas recebe o dom do sacerdócio ministerial, esse deve ser o mais exemplar na entrega aos demais e no serviço aos demais. O termo "ministro" tem sua raiz latina no advérbio "minus" (menos) e no verbo "stare" (estar): "estar a menos", "estar um degrau a menos" do que os outros, como empregado e servidor.
Nesse serviço nós participamos da vida divina exatamente porque participamos da vida de Jesus. A vida de Jesus foi um dom: "tomai e comei, isto é o meu corpo". Nós fazemos eucaristicamente memória desse dom quando nos entregamos inteiramente à doação, até coincidir rigorosamente com o dom recebido. O presbítero sacerdote é aquele que diz do corpo de Cristo: "Isto é o meu corpo". E do sangue de Cristo: "Este é o cálice do meu sangue". Mas está falando também do corpo e do sangue dele próprio. Aqui temos uma identificação sacramental que se torna uma identificação mística e um compromisso para a concretude da vida.
Em sua última Carta aos Presbíteros, por ocasião da Quinta-Feira Santa de 2005, João Paulo II lembra: "não é possível repetir as palavras da consagração sem sentir-se implicado neste movimento espiritual. Em certo sentido, o sacerdote deve aprender a dizer, com verdade e generosidade, também de si próprio: ‘tomai e comei'. De fato, a sua vida tem sentido, se ele souber fazer-se dom".
Missão
"A Eucaristia é o centro vital do universo - diz o Documento de Aparecida - capaz de saciar a fome de vida e felicidade: ‘Aquele que se alimenta de mim, viverá por mim' (Jo 6, 57). Nesse banquete feliz participamos da vida eterna e, assim, nossa existência cotidiana se converte em Missa prolongada" (DA 354).
Missa e Missão têm a mesma raiz latina no verbo "mittere", "enviar". Mesmo se a antiga mensagem final da celebração eucarística não há de ser interpretada estritamente como envio missionário, as duas realidades naturalmente se implicam, porque explicitam essencialmente uma mesma vida que gratuitamente se doa e, desta maneira, se torna plena. O Documento de Aparecida dedica a esse enfoque uma das passagens mais bonitas, onde define o que é missão: "a vida se acrescenta dando-a, e se enfraquece no isolamento e na comodidade. De fato, os que mais desfrutam da vida são os que deixam da margem a segurança e se apaixonam pela missão de comunicar vida aos demais. O Evangelho nos ajuda a descobrir que o cuidado enfermiço da própria vida depõe contra a qualidade humana e cristã dessa mesma vida. Vive-se muito melhor quando temos liberdade interior para doá-la: ‘Quem aprecia sua vida terrena, a perderá' (Jo 12, 25). Aqui descobrimos outra profunda lei da realidade: ‘Que a vida se alcança e amadurece à medida que é entregue para dar vida aos outros'. Isso é, definitivamente, a missão" (DA 360).
Vida não é para ser retida: é para ser doada. Isso é Eucaristia, isso é sacerdócio, isso é missão. O então teólogo Josef Ratzinger, o nosso atual papa Bento XVI, insiste que o verdadeiro elemento integrante da identidade sacerdotal, particularmente do sacerdócio ministerial, reside na dimensão missionária dessa doação. Com efeito, ele diz que essa tarefa de ser enviados por Jesus exige do sujeito não só certa maneira de agir, mas também o toca no seu próprio ser. Ser padre e viver em estado de missão significa ser enviado. Quer dizer que para o sacerdote o seu "ser-para-um-outro" tem uma importância constitutiva. Quem aceita uma missão não pertence mais a si mesmo. E isso por duas razões, continua Ratzinger: ele é expropriado em favor daquele que ele representa, mas também em favor daqueles diante os quais ele o representa. Viver em estado de missão comporta uma laceração na própria existência. E também aqui em duas frentes, conclui o teólogo. Precisa deixar o lugar a quem envia e não preocupar-se com a própria pessoa, deixando-a fora do jogo, não anunciar a si próprio nem apropriar-se da palavra que se comunica, mas abrir o caminho e o espaço a outros, sempre disponíveis a se diminuir para que os outros cresçam.
Tudo isso envolve uma profunda mudança na maneira de conceber a figura do sacerdote em nossas comunidades. Ser padre não é uma profissão: é uma entrega e uma vocação. Em qualidade do testemunho à qual é chamado como discípulo missionário de Jesus Cristo diante da comunidade e do mundo, o presbítero deve ser um homem despojado de si próprio, que "não se pertence", nem pertence mais a uma tribo, nem a uma família e nem a uma comunidade, mas somente Àquele que o envia.
Isso quer dizer que o presbítero tem que aprender a viver e trabalhar fora da cumplicidade aconchegante de sua comunidade, onde é reconhecido e valorizado como "o padre", exerce uma autoridade aceita, é servido e procurado e sua tarefa é definida e apreciada. Por sua vez a comunidade não pode reclamar o padre só para si, porque ele é padre para todos, particularmente daqueles que não fazem parte da Igreja. Com efeito, seu primeiro dever é anunciar o Evangelho a todas as pessoas e a todos os povos (cf. PO 4), privilegiando as ovelhas perdidas (cf. Mt 18,12).
Em segundo lugar, o padre deve ser um homem realmente capaz de estar na linha de frente, nos lugares onde a missão de anunciar o Evangelho se faz mesmo mais exigente. Ele é chamado a estabelecer uma relação amável com todos seus interlocutores e a entrar humildemente em suas casas, como servidor e simples testemunha na tarefa comum a todos de construir uma nova humanidade, sem conquista intempestiva, sem preconceito, sem rigidez, sem exclusividade.
Trata-se sem dúvida de uma conversão missionária que não toca somente a figura do padre, mas todo batizado enquanto discípulo missionário. Todo cristão é chamado a ser um ícone de Cristo, um prolongamento sacramental de Jesus. Sem dúvida, essa concepção sacramental da missão tem no presbítero seu "ministro" por excelência. Jamais podemos esquecer, porém, que deve encontrar concretamente e visivelmente em toda a comunidade que celebra a Eucaristia sua atuação profética.
* Estêvão Raschietti, SX, é diretor do Centro Cultural Missionário - CCM.
Publicado na edição Nº04 - Maio 2010 - Revista Missões.
Fonte: Revista Missões