Alfredo J. Gonçalves *
Sonhei que a Vida Religiosa era uma grande orquestra. O Maestro, Jesus Cristo. Cada Congregação, Ordem ou Instituto tocava um instrumento único, tendo vários músicos especializados, que se substituíam e se complementavam uns aos outros. A partitura era constituída pelas páginas do Evangelho; a nota, pela sinfonia do amor; o ritmo pelo serviço à grande melodia da criação.
Conhecendo a fundo cada instrumento musical e cada membro da orquestra, o Maestro, com uma batuta invisível dava as coordenadas do arranjo musical. Ele sabia que, de acordo com o público e as circunstâncias, às vezes era o toque agudo da corneta que fazia o melhor efeito; outras vezes, o som grave do trombone era chamado a responder a determinada situação; ou ainda, de acordo com os desafios em jogo, prevalecia a delicadeza do violino e do piano. Enfim, todos tinham seu lugar distinto na apresentação da música, mas a partitura, a nota e o ritmo se mantinham uníssonos.
Mas sonhei também que a orquestra vinha tocando de forma desafinada. Alguns instrumentos se haviam desviado de sua função original. Os respectivos musicistas, por sua vez, viam-se um pouco perdidos, numa tentativa desesperada de acertar. Em alguns casos, a partitura evangélica tinha sido substituída por modismos fáceis e atraentes, canções que estavam na crista da onda, mas efêmeras e sem raízes. Não poucos instrumentos, com seus músicos representantes, haviam até esquecido a motivação inicial de seu fundador ou fundadora. Em outros casos, além da partitura, mudaram também o público alvo. A orquestra se recusava a tocar para os mais sedentos de um canto novo: os pobres, os indefesos, os aflitos, os doentes, os migrantes e refugiados, os oprimidos... A grande multidão dos "sem"!
Com o tempo, boa parte da orquestra passou a procurar os mais ricos e poderosos. Aqueles que podiam arcar financeiramente com seus serviços. Tocavam para quem tinha condições econômicas de pagar ingresso ou para quem sabia aplaudir. Embriagavam-se com a euforia das ovações e das palmas. Nutriam-se de elogios fúteis, fugazes e provisórios. Seguiam à deriva da onda da moda!
No extremo oposto, havia os que se aferrava a um legalismo ortodoxo, não admitindo que a partitura evangélica fosse adaptada aos desafios emergentes da atualidade. Tampouco admitiam desviar-se uma vírgula das regras do próprio criador, sem dar-se conta que seguir não é imitar, e sim recriar em novas circunstâncias o espírito original. A história sofre constantes mudanças, anda depressa, e nós não podemos ficar parados. Permaneciam ferreamente escravos do passado, ressuscitando inclusive canções já ultrapassadas. As transformações, de caráter sócio-econômico ou político-cultural, exigem que se busquem novas formas de tocar a mesma melodia evangélica. Só assim ela permanece eternamente jovem, boa nova para os povos e nações.
Desvinculados do Maestro, da partitura bíblica e até do carisma original, muitos musicistas começaram a desenvolver ritmos e estilos próprios, isolados uns dos outros. Exacerbaram-se o individualismo, o isolamento e o personalismo. Embora seguissem aglomerados, os instrumentos e seus respectivos tocadores já não formavam uma verdadeira orquestra. Esta deixou de transmitir uma linguagem orgânica e de conjunto. As tonalidades fragmentaram-se, dispersaram-se e diluíram-se como folhas secas ao vento. Deteriorou-se a relação horizontal entre os diversos instrumentos e os membros da orquestra. Cada um passou a tocar a própria música. Consequentemente, também a relação vertical e íntima com o Maestro ficou seriamente comprometida.
Sonhei ainda que, na mesma medida em que perdia o fundo melodioso que a unificava, a orquestra corria o sério risco de desfazer-se. Os membros que a compunham passaram a dar prioridade aos interesses e obras pessoais, deixando em segundo plano os projetos coletivos. As casas em que habitavam mais pareciam pensões do que comunidades, pois cada morador desenvolvia sua trajetória de vida. Entrava-se e saia-se dessas pensões para comer e dormir, pouco mais do que isso. O "eu" tomou o lugar do "nós", da mesma forma que o "meu" tomou o lugar do "nosso": meu carro, meu celular, minha conta bancária, meus pobres, minha televisão no quarto, e assim por diante! Seduziu-os até a alma a frenética febre do consumo.
Ao acordar, ainda em meio à sonolência, uma pergunta estava suspensa de meus pensamentos: como voltar à sintonia com o grande Maestro, à nota musical e genuína do carisma e à partitura do Evangelho? Mais desafiador ainda: como fazer tudo isso numa fidelidade criativa que, embora motivada pelas origens, é capaz de engendrar acomodações próprias aos tempos de hoje, caminhando confiantes para a promessa dos novos céus e nova terra?
* Assessor das Pastorais Sociais.
Fonte: Alfredo J. Gonçalves