Como se formam consciências e valores

Selvino Heck *

Sou como Luís Fernando Veríssimo: "Não poderia escrever nada sobre o ‘Big Brother Brasil', a favor ou contra, porque sou um dos três ou quatro brasileiros que nunca o acompanharam." Mas os números que acompanham a edição recém encerrada são impressionantes. No paredão final que apontou o vencedor, em plena semana santa, houve 154,8 milhões de votos por telefone ou internet, recorde mundial. O blog do BBB teve 3,7 milhões de visitas no decorrer de sua edição. No Google, se você clica BBB 2010, vai encontrar 98.100.000 páginas. A audiência do programa esteve todo tempo entre 30 e 40%, ou seja, dezenas de milhões de pessoas o assistiram regularmente. Somadas todas as edições, vai-se ver e saber o tamanho e a influência de um único programa de televisão ao longo de uma década, todo início do terceiro milênio e do século XXI.

Como diz Veríssimo, "o pouco que vi do programa, de passagem, zapeando entre canais, só me deixou perplexo: o que, afinal, atraía tanto as pessoas -além do voyeurismo natural da espécie- numa jaula de gente em exibição?" Faço a mesma pergunta: afinal, o que é o BBB que não vejo?

Quem participa é um jogador. Entra para ganhar um milhão e meio de reais. Para ser o vencedor, precisa ficar confinado numa casa de onde não pode sair por três meses, com pessoas que nunca viu na vida e provavelmente nunca mais verá terminado o programa. Sendo um jogador, precisa trapacear, mentir, enganar: inventar amores, fazer de conta que gosta de alguém mesmo não gostando, fazer jogos sexuais, namorar de mentirinha, jogar as pessoas umas contra as outras, brincar com preconceitos. Ou seja, ser uma pessoa que não é, ou talvez mostrar-se sem disfarces, como de fato é, com suas pequenezas e vilanias.

A sociedade do espetáculo revela-se em sua inteireza. Ser visto o dia inteiro, mostrar-se o tempo todo (pagando, tem-se acesso à casa 24 horas), olhar o que os outros fazem e dizem, com um glamour disfarçado e em geral rasteiro, sem poesia, com pouca ternura. Mas milhões olham, votam, participam como estivessem por ganhar o butim final ou também ficar famosos. Milhões embotam-se nos seus valores e mentiras. O poder da comunicação desvela-se e seduz.

Não há termo de comparação, pelo menos do ponto de vista dos números, entre a capacidade de influência nas mentes e corações de um único programa televisivo com aqueles que, de outra forma e com outros instrumentos, procuram transmitir e construir valores de outra ordem: solidariedade, justiça, partilha, fazer coletivo, convivência democrática. Quem atua nos movimentos sociais, em ONGs, em pastorais populares, quem pratica a educação popular de Paulo Freire e vai de porta em porta para conversar com as pessoas, participa de reuniões em pequenos grupos, de encontros de formação, de vez em quando faz mobilizações de massa, não tem os instrumentos poderosos da comunicação de massa que atingem milhões instantaneamente. Há, é certo, hoje ferramentas mais democráticas, como a Internet, capazes, e de forma razoavelmente acessível, de possibilitar um acesso mais rápido e amplo a informações, notícias, análises e construção de idéias. Mas os mais pobres, os que moram mais distantes dos centros urbanos, as próprias escolas ainda estão longe do seu acesso diário, dentro de casa ou no serviço.

Uma máquina de fabricar valores invade casas, cabeças de crianças, adolescentes, jovens de forma avassaladora. Quem é pai, mãe ou professor, sabe. O jogo televisivo é levado para as escolas, para as ruas, para o dia a dia, para a vida. Aí se constroem as relações humanas e afetivas, as formas de pensar, como se comportar no trabalho, como encarar a economia. Não espanta que a violência se faça presente ou a mentira se torne natural, ou ganhar dinheiro seja o único e principal objetivo na vida, não importa como e contra quem, de muitos jovens. Se é visto na televisão, se é mostrado como se deve pensar e agir, que mal faz? Ou como e porque proceder diferente?

A competição ou o confronto são desleais: os vencedores estão dados e os resultados fazem parte do cotidiano. Quem não concorda, resiste e busca mudar as regras. Quem quer construir outro mundo possível não desiste. Sabe que o jogo é pesado, que a vitória não é fácil e leva tempo. Mas é da vida e é preciso acreditar e continuar lutando.

* Assessor Especial do Presidente da República do Brasil. Da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política

 

Fonte: www.adital.com.br

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