Selvino Heck *
"O Relator Especial felicita o Brasil pelo notável progresso na realização do direito à alimentação desde 2002. O estabelecimento de leis e instituições que promovem o direito à alimentação obteve resultados significativos na redução da desnutrição e da pobreza, juntamente com a criação e subsequente expansão dos programas Fome Zero e o e elogiável apoio à agricultura familiar". Assim o Relator Especial da ONU, Olivier de Schutter, abre as Conclusões e Recomendações do seu Relatório sobre o Direito à Alimentação, na Missão Brasil, feita de 12 a 18 de outubro de 2009.
Diz mais: "Um conjunto impressionante de políticas sociais foram agrupadas sob a estratégia ‘Fome Zero' do governo federal. A estratégia deve ser elogiada, em particular, por sua dimensão participatória: as várias políticas que a compõem são caracterizadas por um grau impressionante de envolvimento da sociedade civil em seu desenho e implementação, assim como por uma abordagem descentralizada que dá poder às autoridades locais e focaliza melhor os grupos mais vulneráveis.. O programa Fome Zero abarca 53 iniciativas implementadas por 11 Ministérios diferentes. A dimensão participatória destes programas (da estratégia Fome Zero), em particular por meio do trabalho do CONSEA(Conselho Nacional de Segurança Alimentar), é admirável e o sucesso do Brasil no combate à fome e à desnutrição, em particular a desnutrição infantil, dão testemunho da contribuição que estas estratégias participatórias podem oferecer para a realização destes objetivos. O Relator Especial ficou impressionado pelo grau de envolvimento das organizações da sociedade civil no trâmite a Emenda constitucional que garante o direito à alimentação. O Brasil merece elogios por estes esforços."
Segundo o economista Marcelo Néri, chefe do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas, o número de pobres no Brasil continuou caindo em 2009, o que acontece pela primeira vez em um momento de crise desde os anos 1980. "A proporção de pobres caiu de 30,17% para 18,23% entre 2003 e 2008. Nas crises anteriores, a pobreza nacional não aumentou. Não caiu, porém. Em 2009, mesmo com a crise, a pobreza apresentou redução média de 1,25%, que pode ser uma estimativa conservadora".
O Brasil reduziu em 16% a população de habitantes de favelas. Cerca de 10,4 milhões de pessoas deixaram este tipo de habitação, diz o relatório State of the World's Cities, da ONU. O número de pessoas que moram em favelas diminuiu de 31,5% para 26,4% em dez anos, devido à adoção de políticas econômicas e sociais, a diminuição da taxa de natalidade e da migração do campo para a cidade. "Além disso, a criação do Ministério das Cidades, a adoção de uma emenda constitucional afirmando o direito do cidadão à moradia e os subsídios de materiais de construção, terrenos e serviços são apontados como responsáveis pela diminuição do número de favelados." Dos países pesquisados, o Brasil está atrás apenas de China, Índia e Indonésia.
Tudo resolvido, pois? Não. Vejamos outros dados.
Se a pobreza teve redução em 2009, a desigualdade andou de lado. O Índice de Gini, que quanto mais próximo de zero indica que a distribuição de renda é mais igualitária, ficou em 0,5779 em dezembro de 2009, contra 0,5778 de dezembro de 2008. Ou seja, a pobreza diminuiu, mas a desigualdade aumentou.
Segundo o estudo "Evasão e Eqüidade na América Latina", da CEPAL (Comissão Econômica para América Latina e Caribe), janeiro/2010, "a alta desigualdade distributiva é um dos traços mais característicos da situação social na América Latina, onde um pequeno percentual da população concentra grande parte da riqueza, enquanto um significativo número de seus habitantes encontra-se abaixo dos níveis de subsistência. A região apresenta um nível de desigualdade na distribuição pessoal da renda substancialmente maior que em outras regiões do mundo, com um coeficiente Gini médio de 0,53. O país menos desigual da região é ainda mais desigual que qualquer integrante da OCDE ou qualquer país do Oriente Médio ou África do Norte. Mais. A América Latina não só é a mais desigual de todas as regiões do mundo, mas é das que registra menores avanços nesta matéria nos últimos 20 anos".
De acordo com o estudo da CEPAL, o Brasil, embora o país mais rico do continente, é o de maior desigualdade entre todos da América Latina, perdendo para Venezuela, Uruguai, Bolívia e Guatemala, por exemplo, com índice de Gini próximo a 0,6, ou seja, altíssimo.
Se há, portanto, números e dados altamente positivos, especialmente a partir do governo Lula, outros continuam altamente preocupantes. O que fazer, que medidas tomar, quais são os próximos passos, necessários e urgentes?
Segundo o estudo da CEPAL, "faz-se particularmente importante a ação do Estado no que diz respeito às ações distributivas, tanto através do uso de instrumentos relacionados com o gasto público como aqueles que se encontram vinculados com os sistemas tributários. Em sociedades tão desiguais como as latinoamericanas, não basta, porém, que a política redistributiva seja feita a partir do gasto público, mas resulta importante o papel que jogam os sistemas impositivos em favor de uma maior eqüidade na distribuição da renda. Destaca-se então a necessidade de fortalecer a tributação direta e gerar um melhor balanceamento entre esta e a tributação indireta".
Olivier de Schutter, no seu Relatório sobre o Direito à Alimentação no Brasil, diz que "grandes desafios, entretanto, continuam a existir" e faz várias recomendações, como por exemplo. Convida o governo a incluir em seu processo de regularização das terras indígenas o forte compromisso de reduzir a concentração da terra e garantir um padrão de ocupação efetiva e sustentável na região amazônica. "O governo deveria procurar acelerar as demarcações, determinadas pela Constituição, de terras indígenas, quilombolas e de outras comunidades tradicionais e, até que isso ocorra, essas comunidades deveriam ser melhor protegidas contra grilagem. As autoridades deveriam realizar, sistematicamente, avaliações ‘ex ante' do impacto sobre o direito à alimentação, ao se engajarem em projetos de infra-estrutura de grande escala, tais como barragens, com a participação das comunidades afetadas".
Ainda. "O Brasil deveria rever a estrutura de suas receitas públicas existentes e seus gastos públicos. Só uma reforma tributária que invertesse a atual natureza regressiva da tributação poderia permitir que o Brasil afirme o cumprimento da exigência do direito à alimentação e permitiria um progresso ainda maior na luta contra a fome." Ele incentiva o Brasil a destinar uma parte das receitas do pré-sal à estratégia Fome Zero.
Mais. "O governo deveria prosseguir e expandir a estratégia para garantir uma redistribuição mais eqüitativa da terra e aumentar ainda mais o apoio que dá à agricultura familiar, garantindo que receba o apoio necessário para enfrentar os desafios de uma eventual ampliação da liberalização do comércio agrícola. O governo deveria ampliar seus esforços para monitorar o cumprimento das exigências sociais e ambientais na produção de cana de açúcar, verificando o cumprimento das legislação trabalhista e ambiental e impondo penalidades dissuasivas nos casos de não cumprimento, inclusive expropriação sem indenização".
Finalmente, "a integração da produção de alimentos e energia deveria ser encorajada a nível local. O Brasil deveria liderar pelo exemplo, realizando uma avaliação de impacto participativa e abrangente dos efeitos da ampliação do comércio internacional na realização do direito à alimentação, assim como dos efeitos distributivos e gerais desta liberalização".
Nem tudo são flores, portanto. Há muito por fazer para avançar. Sem a Reforma do Estado, inclusas aí as reformas eleitoral e partidária, a Reforma Agrária e a Reforma Tributária, entre outras reformas, o Brasil não alcançará padrões aceitáveis de distribuição de renda, de igualdade econômica e social e de qualidade de vida para todos os brasileiros e brasileiras, dignos e à altura de um dos paises mais ricos do mundo economicamente e cada vez mais reconhecido por sua soberania e capacidade de diálogo na cena internacional.
* Assessor Especial do Presidente da República do Brasil. Da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política