Alfredo J. Gonçalves *
Ao contrário do pensamento dualista e essencialista, que vai de Platão e Aristóteles até a Escolástica Medieval de Santo Tomás de Aquino, passando por Santo Agostinho e pelos demais Santos Padres, Deus não é aquele que é, uma espécie de "motor imóvel" que, sem se mover, tudo põe em movimento. Se seguirmos a linha de raciocínio dos teólogos e místicos contemporâneos, Deus é antes aquele que vem, que chega de improviso, que irrompe na história pessoal e coletiva. Que, a partir do futuro, convida a avançar, pois Ele mesmo nos projetou para uma superação contínua de nossas próprias limitações. Sempre nos convida a um passo a mais na caminhada da perfeição, seja ela de caráter individual ou sócio-política.
É o que procura mostrar a grande obra de Joseph Moingt, sobre o Homem que vinha de Deus. Notória e cômoda é a tendência humana à lei física da inércia. Chegamos a um determinado estado e facilmente nos instalamos aí, felizes e satisfeitos de ter alcançado esse patamar. Perdemos de vista que cada ponto de chegada constitui um novo ponto de partida. Ou esquecemos nossa condição de peregrinos sobre a face da terra. Fazemos de nossa tenda uma casa sólida, vale dizer uma fortaleza, com raízes fixas e muralhas intransponíveis. De estrangeiros que somos, tornamo-nos cidadãos do mundo e da história "aqui e agora", sem darmo-nos conta que estamos fora da pátria. Olvidamos que nosso coração e nossa alma só repousam plenamente em Deus, como já nos alertava a espiritualidade Santo Agostinho.
Deus irrompe para sacudir essa inércia e esse torpor. Para tirar as teias de aranha de nossos braços e pernas embotadas pela vida sedentária. Lembra-nos que toda formação sócio-econômica é provisória e contextual, que a história humana está em permanente vir a ser, em constante aperfeiçoamento. Com isso, impulsiona-nos à marcha que só termina no Reino de Deus, o qual não se esgota em nenhuma realização terrena. A trajetória judaico-cristã está recheada de exemplos desse processo, que nada tem de estático, mas mostra-se de natureza eminentemente dinâmica. Deus vem não para lembrar o saudosismo do passado, mas para apontar novas encruzilhadas e a necessidade de novas opções. O "paraíso perdido" não está atrás, na memória do berço, mas é preciso buscá-lo nos desafios da fronteira.
Deus nos desinstala e nos põe novamente a caminho. Tomemos dois testemunhos bem conhecidos e emblemáticos. O primeiro é do patriarca Abraão, o "arameu errante": "Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que eu te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome; sê uma benção" (Gen 12, 1-2). Depois, o de Moisés: "Agora, o clamor dos filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que os egípcios os estão oprimindo. Vai, pois, eu te enviarei ao Faraó, para fazer sair do Egito o meu povo, os filhos de Israel" (Ex 39-10). Vale o mesmo para o discurso poético, inflamado e veemente dos profetas: "Ele julgará as nações, ele corrigirá a muitos povos. Eles quebrarão as suas espadas, transformando-as em relhas, e as suas lanças, a fim de fazerem podadeiras. Uma nação não levantará a espada contra a outra, e nem se aprenderá mais a fazer a guerra" (Is 2, 4). Os exemplos poderiam repetir-se à exaustão. Todos convergem para a experiência de um Deus não impassível e indiferente aos dramas humanos, mas que caminha na história com o seu povo, abrindo possibilidades de libertação.
Tomo emprestadas algumas observações de Joseph Moingt que nos ajudam a entender o significado mais profundo do Mistério da Encarnação, o qual leva à plenitude as palavras do Livro do Êxodo e do Livro do Deuteronômio, o chamado credo histórico do povo israelita: "Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito, ouvi o seu clamor por causa dos seus opressores, pois eu conheço as suas angústias; Por isso, desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios, e para fazê-los subir daquela terra a uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel" (Ex 3, 7-10; Dt 26,5-10). O Deus invisível, que vê, ouve, conhece e desce, revela-se plenamente no Filho visível para abrir-nos o sentido oculto da vida e da história. O Espírito Santo passa a ser o motor vivo do amanhã que se descortina e se renova. Seguindo o pensamento do autor, o Verbo encarnado é o projeto de Deus para todo ser humano, o desenho que Deus traçou para a felicidade de cada um de nós. É também a gratuidade do amor do Pai oferecido em oblação a toda humanidade. Deus irrompe da vida de cada pessoa e no mundo, como possibilidade de nova alternativa ao rumo da história, simbolizada na construção do Reino de Deus. E essa irrupção divina rompe com os esquemas estáticos, cerrados. Abre opções distintas para a trajetória da humanidade, através da ação do Espírito Santo.
O evento constituído pela vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo revela uma nova relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A comunidade da Santíssima Trindade propõe caminhos novos às relações humanas e à história como um todo. Caminhos que passam, necessariamente, pelas coordenadas da ação humana. Por fim, a presença de Jesus entre nós manifesta a predileção de Deus pelos pobres, indefesos e desvalidos, pois são esses que, no fundo e mesmo inconscientemente, anseiam por mudanças substanciais. Os ricos tendem a estacionar no tempo, mas os que estão à margem procuram formas de inclusão social, cultural e política "(Cfr. MOINGT, Joseph. L'home qui venait de Dieu, Éditions du Cerf, Paris, 1993).
À lista dos pobres, não custa acrescentar os (i)migrantes, refugiados, prófugos, marinheiros, nômades e itinerantes como protagonistas privilegiados das transformações necessárias. De fato, o ato mesmo de ( i )migrar, de sonhar e deslocar-se em busca de um futuro mais promissor, de um lado, revela estruturas pesadas e injustas que impedem a permanência na terra natal; de outro lado, aponta para a necessidade de profundas mudanças, em nível nacional e internacional, de ordem econômica, política, social e cultural. Os migrantes são como que anjos de Deus que relembram a todos a urgência de marchar, de construir "novos céus e novas terras" (Ap 21,1).
A Casa de Deus tem assim dupla dimensão: por um lado, é tenda, que se faz, desfaz e refaz no esforço terreno de superação das contingências históricas, das desigualdades sociais e das injustiças que vitimam a tantos seres humanos; por outro lado, é a perspectiva permanente do Reino de Deus, que nos aponta para um horizonte sempre desconhecido e fugidio, mas que orienta nossos passos. Tenda provisória, própria de estrangeiros que somos sobre a terra, e que nos vai antecipando o oxigênio vivo da Casa definitiva.
* padre, assessor das Pastorais Sociais.