O Sagrado se fez gente

Luiz Carlos Ramos *

Não, moço. Não foi uma noite tão feliz. Fazia frio. O vento cortante feria os lábios, ressecava os ossos.

Os que vieram recensear-se abrigavam-se como podiam. Não era tanto por maldade que os moradores do lugar não ofereciam hospedagem. É que eles mesmos viviam tão modestamente que era com dificuldade que tapavam as frestas e aninhavam-se em seus casebres. Ademais, era muita gente de uma só vez na provicinciana e pacata Beth-Lehem.

Eu estava ao relento, sob as estrelas de um céu gelado-escuro, como de costume. Não, não. Não é que eu seja uma criatura soturna, boêmia ou romântica. Sou só um pastor.

Isto é, sou sem-teto, sem-terra, sem educação, sem-eira-nem-beira... Cuido de ovelhas, só isso - esses animais frágeis e melancólicos, quase tanto como eu.

A noite era como muitas outras - porque, na verdade, tudo é igual, a gente é que é sempre diferente. Havia estrelas, havia vaga-lumes, havia sons ao longe: mugidos, latidos, choros de criança...

Na mesmice do balanço das árvores, aconteceu alguma coisa diferente aos meus olhos. De repente, as estrelas de sempre pareciam brilhar mais que o normal. Meus ouvidos sintonizaram um choro de recém-nascido. As folhas das árvores pareciam música angelical. Os pirilampos pareciam brilhar gloriosamente.

Continuei a caminho do aprisco. As ovelhas, sem perguntar nada, me seguiam tranquilas e pacientes. O choro de criança ficava mais forte e pude perceber de onde vinha.

Uma dessas famílias-sem-nada havia ocupado uma das grutas onde os animais se abrigavam e ali disputavam aconchego junto a bois e ovelhas.

O pai tinha o rosto sulcado pelo suor, franzido pelo trabalho rude. A mãe parecia mais a irmã do recém-nascido, tão jovenzinha. No rosto, a perplexidade de quem contempla o maior dos mistérios: a Vida. Nos lábios, o sorriso tímido. Nos olhos marejados, as gotas salgadas que transbordavam daquelas janelas da alma.

Entrei devagar, quase solene. Tudo era tão igual, mas ao mesmo tempo tão radicalmente diferente. Era como se eu não fosse eu. Meus olhos viam o que jamais haviam visto. Meus ouvidos se encantavam com sons tão corriqueiro como se os ouvissem pela primeira vez.

Ajoelhei-me, porque me dei conta de que estava diante do mistério da Vida. Chorei, porque tudo era tão singelamente fantástico. Orei, porque, naquele momento, percebi que estava face-a-face com o sagrado que habita o cotidiano.

Não. Não foi uma noite tão feliz. Continuava frio. O cheiro de esterco ainda era forte. A palha pinicava o recém-nascido. As roupas da mãe estavam sujas de sangue.

Eles, como eu, continuavam sem teto, sem agasalho, sem nada. Choravam sorrindo. Sorriam chorando. Tudo era exatamente igual. A única coisa que já não era a mesma igual éramos eles e eu. Porque nossos olhos viam não uma noite feliz no céu, mas o amanhecer de um novo dia de paz na terra.

* teólogo

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