Lúcia M. M. de Andrade e Carolina K. I. Bellinger *
A existência de quilombos contemporâneos muitas vezes suscita surpresa e suspeição. É bem possível que tal reação decorra da visão errônea que os considera um fenômeno ligado ao passado e dissipado com a abolição da escravidão. Não por acaso o quilombo mais conhecido entre nós é o de Palmares, um quilombo destruído pela repressão branca.
Estudos demonstram que muitos outros quilombos existiram e resistiram pelas mais diversas regiões de nosso país até os dias de hoje. No processo mais recente de luta por seus direitos, homens e mulheres quilombolas vão superando a invisibilidade e evidenciando mais uma face da diversidade sociocultural do Brasil. Estimativas apontam a existência de cerca de 3 mil comunidades quilombolas; o cadastro do governo federal já reconhece 1.342 grupos.
A existência de quilombos contemporâneos é uma realidade latino-americana. Tais comunidades são encontradas em países como Colômbia, Equador, Suriname, Honduras, Belize e Nicarágua. E em diversos deles - como ocorre no Brasil - o seu direito às terras tradicionais é reconhecido na legislação. Na América do Sul, três constituições reconhecem direitos de comunidades quilombolas: as da Colômbia, do Brasil e do Equador.
A Colômbia foi o primeiro país a tratar em sua constituição do direito à terra dos afro-colombianos em 1991, direito que foi regulamentado pela Lei 70 de 1993 e Lei 397 de 1997. A constituição brasileira desde 1988 garante às comunidades descendentes dos quilombos proteção de seus "modos de criar, fazer e viver" (artigos 215 e 216) e a propriedade de suas terras (artigo 68 do ADCT). No Equador, a constituição de 1998 já reconhecia aos afro-equatorianos direitos coletivos às suas terras. A nova constituição de 2008 reafirma tais direitos. O Equador conta também com a Ley de los Derechos Colectivos de los Pueblos Negros o Afroecuatorianos de 2006 que assegura os direitos dos povos negros sobre as suas terras ancestrais.
Na América Central, a constituição da Nicarágua de 1987 garante às "comunidades da costa atlântica" as formas comunais de propriedade das terras e o procedimento para titulação dessas terras está regulamentado pela Lei 445 de 2002. Em Honduras a Ley de Propiedad de 2004 reconhece o direito dos afrohondurenhos a suas terras e especifica que as mesmas devem ser tituladas de forma coletiva.
A defesa dos direitos dessas comunidades já alcançou a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos onde foram apresentadas demandas das comunidades Cimarrón (ou maroon) do Suriname (em 1997 e 2000), Garífuna de Honduras (em 2003) e das comunidades quilombolas de Alcântara do Brasil (em 2001).
Os casos contra o Estado de Suriname - que não tem legislação própria sobre a matéria - já contam com decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O primeiro deles é o da comunidade Moiwana, vítima da repressão do governo que, na década de 1980, ordenou a evacuação de suas terras para o combate a um grupo de oposição armado, destruiu o povoado e executou cerca de 40 comunitários. O pedido principal foi a reparação de danos materiais, morais e espirituais. Na sentença de 2005, a Corte declarou a violação do direito à propriedade dos Moiwana previsto no art. 21 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconheceu que o caso envolve um direito de propriedade diferenciado que demanda medidas administrativas e legislativas para assegurá-lo. O segundo caso é o da Comunidade Saramaka que denunciou a violação aos seus direitos de propriedade e demandou medidas para suspender atividades de extração de madeira e mineração em suas terras. Na decisão de 2007, a Corte estabeleceu entre outras a determinação que o Estado de Suriname assegure a titulação coletiva das terras Saramaka e adote medidas legislativas e administrativas para garantir à comunidade o direito de consulta prévia sobre empreendimentos que tenham impacto sobre seu território bem como o acesso aos benefícios gerados por tais projetos.
As demandas à Corte Americana evidenciam que a efetivação dos direitos das comunidades quilombolas permanece como um desafio nos diversos países. O Brasil não foge a regra. Em nosso país, apenas 173 comunidades contavam com o título coletivo de suas terras tituladas até outubro de 2009 - 6% do total estimado de comunidades. A garantia dos direitos das comunidades quilombolas é mais um dos desafios latino-americanos.
* Coordenadora da Comissão Pró-Índio de São Paulo / Pesquisadora da Comissão Pró-Índio de São Paulo