Roberto Antonio Liebgott *
O bispo, os calangos, as guloseimas do presidente e associados!
Algumas falas do presidente Lula, por ocasião de sua visita aos canteiros de obras de transposição do rio São Francisco, merecem uma breve reflexão. Diz o presidente: "Resolvi fazer [a obra] não porque sou engenheiro, mas porque eu, com sete anos, carreguei pote de água na cabeça e sei o sacrifício... Teve um bispo que fez até greve de fome para que não se fizesse essa obra... Se a gente não cuidar, o principal animal em extinção no mundo será o ser humano, não é pouca coisa... E que quando a gente quer fazer uma obra como essa os que tomam café da manhã, almoçam, jantam, tomam água gelada todo dia são contra a gente fazer... Não quero que a gente mate um passarinho, um calango, uma cobra, agora, não posso deixar o povo pobre morrer de sede e de fome".
Depois do discurso, veio a ceia do presidente, junto aos seus ministros, assessores e daqueles que lucram com as obras, os associados do governo, donos das empreiteiras. No cardápio não havia passarinhos, nem calangos, nem cobras e muito menos água. As guloseimas servidas foram camarão - que os pobres tão arduamente defendidos pelo presidente não comem e que não faz parte do bolsa família - risoto de queijo parmesão - acredito que este também não seja um alimento trivial para aqueles que carregam potes de água na cabeça - purê de abóbora com carne de sol - talvez uma homenagem sutil aos homens e mulheres nordestinos, aqueles que o presidente diz serem os beneficiários principais da transposição do São Francisco. E para beber, eis o alívio, depois de discursos extenuantes, uísque de 12 anos e para os mais humildes servos do presidente e seus associados nada de água, cerveja. É de se perguntar se o cardápio, o uísque 12 anos e as cervejas, fazem parte do "pacote" de benefícios destinados aos pobres que carregam pote de água na cabeça e ou, quem sabe, são uma maneira de externar a solidariedade e o incomparável cuidado com o principal animal em extinção no mundo que, de acordo com o presidente, é o homem.
Merece destaque a hospedaria feita exclusivamente para abrigar o presidente e associados no canteiro de obras localizado no km 316 da BR-323, próximo à cidade de Custódia (PE) e que foi descrita pela jornalista Simone Iglesias na Folha de São Paulo: "O presidente ficou em uma suíte improvisada com cama "king size" (para quem não sabe, como eu não sabia, se trata de uma cama de Rei), carpete, frigobar, banheiro, antessala e um gabinete para reuniões. Os quartos à direita e à esquerda do presidente foram ocupados por seguranças. Na suíte de Dilma (primeira ministra do país), havia banheiro privativo, antessala e decoração com flores. Em uma parte da casa foi montado um quiosque que faz às vezes de cozinha. No balcão, foi colocado coquetel, sucos, água, quiches (para os que não sabem, como eu, é uma espécie de empada recheada de queijo - ou torta de queijo), bolos, castanhas, queijos e frutas para receber a comitiva presidencial".
A hospedaria foi também chamada, por alguns, de acampamento no canteiro de obras. Mas que belo modelo de acampamento o presidente oferece! Os trabalhadores rurais sem terra, que lutam pela reforma agrária, certamente ficariam constrangidos com esse moderno e arrojado ambiente. Bem que poderiam ser estruturados - pelo Incra - à beira das estradas para abrigar o povo que espera o governo cumprir sua responsabilidade de realizar a reforma agrária. Também os povos indígenas, milhares de pessoas que vivem debaixo de lonas pretas à beira de estradas, aguardando que o governo federal demarque as suas terras e lhes assegure assistência digna, saneamento básico, água potável, ficariam bem mais protegidos do frio, calor e das chuvas com o moderno acampamento do presidente da República e dos associados.
Mas, e o bispo? Parece que, mesmo se recusando a pronunciar o seu nome durante seus inflamados discursos, Lula considera Dom Luis Cappio uma pedra no caminho da transposição. É que o bispo, não se calou mesmo depois que o Lula fez a ele dezenas de promessas de que submeteria o projeto de transposição a um amplo debate público. Lula preferiu, ao invés de debater, proferir impropérios contra aqueles que visam discutir de forma democrática as obras que lhes afetam.
Ao que parece a democracia não é mais um jogo que o presidente deseja jogar. Para saciar a ganância dos associados e convivas, o presidente da República utilizou-se de um expediente no mínimo antidemocrático, na Câmara dos Deputados, para alterar a legislação e facilitar a continuidade das obras de transposição das águas do São Francisco. Em medida provisória que tinha por objetivo prestar socorro financeiro a municípios, o governo incluiu, de "contrabando", um artigo que apressa a desapropriação de imóveis considerados de utilidade pública, um dos principais empecilhos jurídicos enfrentados pelos investimentos federais (conforme noticiou a Folha, no dia 16/10).
Para o presidente é melhor ouvir moda de viola, beber uísque de 12 anos e ter ceia farta com os empreiteiros associados do que sentar-se à mesa para um debate inteligente e tratar as pessoas sérias com o respeito que elas merecem. Em diferentes obras projetadas país afora, o presidente tem se deparado com certos "empecilhos" que lhe desagradam - um bispo jejuando aqui, um movimento protestando ali, pessoas sofridas reclamando segurança, saúde, educação, moradia, terra. Para Lula tudo isso se trata apenas de disputas para salvar calangos, pererecas, cobras, bagres, passarinhos. Ele está convencido de que seu Programa de Aceleração do Capital é infalível, inevitável, incontestável. Agradando ou não, o presidente e seus associados querem que as obras saiam e isso parece ser, em si, razão suficiente para que o povo se cale e aplauda de pé. Aí vai, então, o aplauso: Viva o bispo, vivam os calangos! Que a prepotência de alguns não destrua a esperança dos que almejam uma sociedade democrática e plural.
* Roberto Antonio Liebgott é vice-presidente do Conselho Indiginista Missionário - Cimi.