Revista Missioni
Padre Filipe Couto é missionário da Consolata e nasceu em Moçambique no ano de 1939. Estudou e doutorou-se na Itália e na Universidade de Munster, na Alemanha. Regressa à sua terra natal onde entra em contato com a Frelimo, (Frente de Libertação de Moçambique), que luta pela libertação de Portugal, indo fixar moradia na Tanzânia. No ano de 1996 foi nomeado reitor da Universidade Católica de Moçambique e desde 2007 é reitor da Universidade Eduardo Mondlane. Conhece todos os dirigentes dos Partidos Frelimo e da Renamo.
Tendo uma personalidade controvertida e de um olhar genial sobre a vida e a história, coloca seus interlocutores em eternas "provocações" cujos diálogos intensivos e intempestivos, parecem estar sempre a duelar com todos os intervenientes e suas respostas regressam em outras perguntas compulsivas num discurso interminável.
Por isso, nada mais justo e natural, perguntar-lhe porque ao mesmo tempo ele pôde ser missionário e guerrilheiro participando da luta armada pela libertação de seu país?
"Penso que muitos exageram sobre a minha vida - diz padre Filipe Couto. Não entendem porque de um momento para outro participei na luta armada. Existem determinadas circunstâncias na vida que um deve encontrar caminhos alternativos. Para o meu caso, no início dos anos 70, como estava no Norte de Moçambique, devia sair e ir à Tanzânia onde estava o núcleo da Frelimo. Para mim não havia uma linha divisória entre ser missionário da Consolata e ter entrado na Frelimo. Ainda não tinha ideias muito claras, mas se havia uma proposta para um governo no meu país, por que eu fazer parte deste movimento de libertação nacional?
Os primeiros anos na Frelimo... um padre envolvido no movimento de revolução marxista?
Quando eu entrei já tinham assassinado Eduardo Mondlane - foi ele o fundador da Frelimo. Havia dentro do Partido uma linha de purificação e de determinação que queriam abraçar, evidentemente a linha marxista. Eduardo tinha fundado uma frente que reunia todas as tendências. Tinha chegado o momento de lutar pela Independência e saber quais seriam os objetivos desta luta de libertação. Para nós, Moçambique era a prioridade e devíamos resolver os problemas do país, segundo as necessidades em seu contexto real e concreto. Fazer uma independência pela guerrilha apenas para ocupar o território ainda não era a melhor opção, muito embora tínhamos afirmado, que era através das armas uma das maneiras fundamentais para se chegar à libertação.
Como hoje tem mudado o ativismo político dos jovens a respeito da luta pela Independência?
Durante a guerrilha não houve um tempo para a reflexão, análise, nem de discussões, pois era um momento de emergência. A direção do "comite político-militar" decidia e tudo era executado. Os meninos que estavam nas zonas libertadas deviam estudar. Um jovem de 18 anos devia trabalhar no campo ou fazer o serviço militar ou então mandavam estudar. Fazíamos aquilo que o comite central decidia fazer. Era uma época de síntese e decisão e não propriamente de análise.
Atualmente, os jovens começam a entrar num clima de discussão para que falem e tomem suas próprias ideias. Creio que está surgindo uma nova época na qual devemos educar os jovens à liberdade, à crítica e auto-crítica, à solidariedade. Sobre estas coisas pensávamos pouco. Para nós, era importante saber como devíamos nos organizar em caso de bombardeio aéreo, onde esconder-nos e esconder nossos filhos. Os tempos eram outros.
Os jovens universitários de hoje estão interessados na política?
Naquele tempo não discutíamos sobre política e dizíamos: "combatei contra o colonialismo português, contra a exploração do homem pelo homem". Hoje, ao invés, a mensagem é outra e mais clara: o país é grande, são muitas e diversas as oportunidades, temos muito de aprender, para termos médicos, engenheiros, veterinários, pilotos, etc. Afirmamos que se tivermos pessoas educadas e formadas, as oportunidades são grandes, mas ao mesmo tempo as responsabilidades ainda são maiores. De outro lado, se necessitarmos que alguém que vá estudar no exterior, as portas estão abertas. Ao regressarem, veremos o que podem fazer. Aquilo que é política no sentido de defesa, segurança, é menos sentida. Há um outro clima, pois os jovens já não olham mais para isto.
Qual é o nível dos jovens universitários moçambicanos e como á feita a preparação?
Fazemos três ciclos, o 1° e o 3° de três anos e o 2° de dois anos. Durante o 1°, veremos os mais preparados e decidimos sobre quais vale a pena investir. Mas avaliamos sobre aqueles que são menos excelentes. Investimos em duas vertentes, o investimento da formação no exterior e aquela dos alunos que permancem dentro do país.
O país tem conseguido uma paz estável depois de 30 anos de guerra civil. Isto é um exemplo para toda a África. Como isso foi possível?
Nós, quando chegamos e assumimos a governação, tínhamos uma ideia romântica do poder. Temos visto pessoas no Maputo sem trabalho, as ruas com muitos bebados e prostitutas. E nós queríamos uma cidade limpa. Então, decidimos levar todas estas pessoas para o Norte de Moçambique, no Niassa, a Província menos populosa do país. E pensamos assim: estarão com a natureza, cultivarão os campos e faremos um homem novo. Chamamos para isto "Operação Produção" mas na verdade foi um grande fracasso. Foram levados para o Norte do país sem terem o mínimo de condições para serem acolhidos, onde ficar e o que fazer. Não receberam nada para recomeçar a vida. Pensávamos que iriam improvisar e desenrrascar-se como nós fazíamos durante a luta de libertação nacional. Mas as pessoas diziam: "aqui nada temos, vocês são piores do que os portugueses, então sim, iremos com a oposição".
A Renamo nasce no exterior e no interior do país com a ajuda dos portugueses que permaneceram no país e outros que foram à Bostswana. Estavam apoiados pela África do Sul, sob o regime do aparthaid e diziam: "Nós vos daremos uma vida melhor do que Samora, Chissano, que são os comunistas". Todavia, os objetivos da Renamo não foram alcançados. Este movimento rebelde estabeleceu-se na Gorongosa - famoso parque nacional - mas acabaram por matar todos os animais fazendo desaparecer elefantes e búfalos. A um dado momento perceberam que através das armas não era possível seguir adiante e deviam tomar outros rumos.
Olhando hoje, creio que a paz chegou porque todos tínhamos aprendido que disparando as armas seria pior, e que, ao invés, se deixássemos as armas caladas se poderia fazer alguma coisa a mais. A um dado momento, ambos os exércitos da Frelimo e da Renamo conviviam juntos. Na África do Sul, Nelson Mandela tinha saído da prisão. O Zimbabwe tornou-se independente. Havia uma conjuntura farovável e o conflito armado poderia resolver-se de outra forma.
Em Moçambique o Produto Interno Bruto tem crescido em torno do 7% ao ano, ao passo que as condições sociais são péssimas. Como se explica este abismo? Incoerência?
Quem disse que a economia está crescendo? O Banco Mundial e os outros dizem que o Zimbabwe não cresce, Moçambique ao contrário, sim. Por que? Se você for ao Zibabwe hoje, encontrará melhores estradas, nas vilas os meninos vão à escola, as pessoas vestem-se melhores do que nós. Se fala que todos os sindicalistas estão na prisão. Por que não se fala que o Rei de Swazilandia coloca gente nas prisões? A questão de dizer que a economia aqui cresce, depende do modo de quem o disse. É verdade que nas cidades se vive melhor: temos bons carros, gasolina, pode-se comprar o que se deseja. Mas isto é artificial, porque o país tornou-se o "menino mais belo" do FMI, ao passo, que o Zimbabwe tornou-se a "ovelha negra".
No Zimbabwe, as universidades, as estradas de Harare estão privatizadas e são as melhores da África sub-equatorial. Tem os melhores professores e formam muitos estudantes. Em Botswana boa parte dos professores são zimbabweanos. Tem 90 mil estudantes e 11 mil cada ano são laureados.
O Zimbabwe tem menos AIDs do que aqui em Moçambique. Tem importado carne da UE, ao passo que em Moçambique não exportou nada. E tudo isso com os 10 anos de boicote dos países. Somente 10% dos campos em Moçambique são cultiváveis ao passo que muitos migraram para o Zimbabwe.
Padre Couto, segundo a tua visão, a paz em Moçambique por hora, é estável?
Quando uma pessoa começa a caminhar? Quando cai, levanta-se, cai, mas novamente levanta-se. Aqui onde estou, basta que eu grite bem alto e passados uns instantes virão trazer-me o leite: "tornamo-nos assim um menino que não cresce". Não creio que meu país esteja em boas condições e pode a qualquer momento explodir, pois não tem estabilidade - para mim.
Onde está o exército? Não o temos. Foi desmobilizado. Fomos de um extremo para outro. Primeiro tínhamos um exército guerrilheiro. Se um dia desses, a Swazilandia quisesse entrar, poderia fazê-lo com a maior facilidade, pois somos pacíficos. Para nós, todos quantos desejam vir aqui e se estabelecer, sempre dizemos "sim"; ao passo, que no Zimbabwe tu não podes fazer o que desejas pois há um exército. Devemos fazer lentamente nossos julgamentos, pois se é verdade que estou contente por que não há mais disparos de armas e temos liberdade religiosa, mesmo assim, encontro-me muito preocupado. Economicamnte, estamos somente recebendo e nada exportando.
E a luta contra a corrupção?
Fala-se que há corrupção, que a justiça tem arrastado o Ministro das Relações Internas, mas perguntemo-nos "até quando conseguiremos fazer verdadeiramente esta revolução?" Falamos sempre que devemos combater a corrupção, mas não estamos refletindo sobre os modos como ela iniciou.
Éramos o único Partido. Porém tinham-no dito: deveis ter o multipartidarismo, entrar nas contas do FMI, no Banco Mundial, fazer atuar o liberalismo econômico. Virão as ONGs e elas vos dirão o que deveis fazer. Nós tínhamos os nossos salários relativamente baixos e as ONGs começaram a pagar salários muito altos.
Terminado os projetos deles, nós não fomos capazes de dar continuidade ao nosso projeto.
De outro lado, quando entram 100,00 Euros com as ONGs perguntamo-nos: quanto fica para Moçmbique e quanto fica para elas?
A corrupção depende de nós mas em parte depende das ONGs, do Banco Mundial e FMI.
Quando fizermos um confronto entre um hospital dirigido por uma ONG com um dos nossos do Estado, o primeiro como eficiência é melhor, mas para onde o dinheiro irá?
O país está cheio de mil e um exemplos pois o nosso problema principal é que não conseguimos regulamentar e não somos donos de nossa casa. Para isto necessitará de muito tempo.
O que podem fazer os moçambicanos para chegar a um desenvolvimento "endógeno" ?
Tem um movimento político que diz: "Recuperemos a auto-estima, iniciemos um serviço militar obrigatório e organizado. Façamos com que nos distritos, as escolas tenham esportes para a juventude. Coloquemos um pouco de trabalho nas escolas. Organizar pólos de desenvolvimento".
Tudo foi tirado, dizendo que os meninos não podem fazer nenhum trabalho, ou em outras palavras, eles não podem varrer a casa e outras tarefas semelhantes. Estes conceitos de liberdade tem entrado depois do tratado de paz em 1992. Muitos são aqueles que gostariam de ver um Moçambique emancipado.
No dia em que Moçambique começará a dizer em alta voz o que pretende e como deve e quer desenvolver-se, como reorganizar o Ministério da Defesa e aquele do esporte, então começaremos a ser "meninos rebeldes".
O governo de Moçambique conta com 8 mulheres ministras, entre elas a premier que torna-se 13 com os vice-ministros. Como chegaram a isto?
Durante a guerrilha contra Portugal, os soldados que capturávamos eram todos homens. De nossa parte, as mulheres faziam o serviço militar e tinha um destacamento militar feminino para o combatimento. Temos anunciado a emancipação da mulher à nossa maneira. Este é o futuro.
Era porque elas têm tomado nas mãos os fuzis. Não estou dizendo que isto era um bem ou um mal, falo assim, para dizer que falássemos de emancipação.
Outras, o primeiro ministro, ministro das finanças, temos a ministra da função pública, que controla todos os ministros. Ao ministério da defesa, de certeza não tereis preocupações nem medos se colocássemos uma, pois temos algumas que bem poderiam ocupar esta função.