Alfredo J. Gonçalves *
"Vida em Primeiro Lugar: A força da transformação está na organização popular"
Texto do Pe. Alfredo Gonçalves para estudo no 11º Encontro Nacional de Articuladores/as Grito
No contexto da crise mundial do sistema financeiro, a 15ª edição do Grito dos Excluídos apresenta-se com uma dupla finalidade: denunciar os mecanismos perversos de acumulação do capital, com suas conseqüências para uma efetiva soberania das nações; e, a partir da crise, anunciar caminhos possíveis a uma reestruturação da economia em nível global.
I. O rei está nu
1. De início, é fácil dar-se conta de que o rei está nu. Ou seja, os fundamentos do liberalismo econômico estão sendo desmascarados, não passam de uma grande farsa. Segundo eles, o mercado teria a capacidade de regular-se automaticamente através da oferta e da procura. O filósofo escocês Adam Smith (1723-1790) chegou a cunhar a expressão mão invisível do capital, a qual equilibraria os dois pólos, a ponto de a economia funcionar de forma mais ou menos autônoma.
O que se vê é que essa liberdade do mercado só vale para o tempo das vacas gordas, dos lucros exorbitantes. Quando as coisas apertam, os próprios capitalistas são os primeiros a chamar a proteção do Estado. Ao invés de utilizarem a gordura acumulada, as empresas nacionais e multinacionais preferem o socorro do dinheiro público. Segue intocável o patrimônio conseguido com a exploração dos trabalhadores. E quando esse patrimônio se vê ameaçado pela organização dos trabalhadores a mão invisível não dispensa o punho de ferro da polícia ou do exército.
2. Ao longo da história do capitalismo, especialmente a partir da crise dos anos de 1930, John M. Keynes (1883-1946), desenvolve a teoria da intervenção do Estado contra a selvageria de um capitalismo desregulado, deixado às suas próprias leis. O keynesianismo, juntamente com a luta travada pelos sindicatos, leva ao Estado de bem-estar social. O governo garante um mínimo de condições para que o trabalhador possa seguir trabalhando. Daí os programas de seguridade social, de aposentadoria, de auxílio materno, de salário mínimo, etc. Estado de bem-estar social funcionou nos anos de ouro do capital, após a Segunda Guerra Mundial. O crescimento acima de 10% ao ano, permitia estender algumas migalhas às classes trabalhadoras. Era o tempo do milagre econômico em muitos países.
Com o início da crise, até essas migalhas são negadas, para permitir maior acúmulo do capital. A crise desnuda também a teoria do keynesianismo. Expressões como flexibilização das leis trabalhistas, terceirização de numerosos serviços, etc., no fundo não passam de uma forma de acabar com os direitos adquiridos dos trabalhadores. Assim, a partir da década de 70, volta-se ao discurso do liberalismo, ou melhor, do neoliberalismo. O conflito entre capital e trabalho volta à sua realidade mais cruel, como raposas e galinhas dentro de um mesmo galinheiro.
3. O capitalismo passou por diversas fases: mercantil, industrial e financeira. Esta última impõe-se nas últimas décadas. Instala-se o que alguns chamam de cassino mundial, onde a especulação desregrada engendra o capital virtual, uma imensa bolha financeira, sem lastro na economia real. Em 2007, no coração mesmo da economia mais poderosa do planeta, a bolha se desfaz.
Ainda aqui, a crise desnuda os mecanismos ocultos da especulação financeira. O discurso do neoliberalismo muda de cara. Os maiores bancos e empresas transnacionais apelam ao Estado para sobreviver. Nos Estados Unidos, na Europa, no Japão, e até mesmo em países periféricos como o Brasil, bilhões e bilhões de dólares do dinheiro público são injetados nesses grandes conglomerados de bancos e empresas. "É preciso salvar o sistema", dizem os políticos de plantão. E assim o capital virtual atinge com força a economia real. Falências e demissões se estendem como ondas, começando pelos países centrais e chegando com rapidez aos países subdesenvolvidos.
4. O pior é que a salvação do sistema se dá à custa dos setores mais pobres e excluídos da sociedade. Outro desnudamento: para as transnacionais, bilhões; para as populações carentes, centavos! Valeria a pena colocar na balança essa equação: num prato, o montante utilizado para salvar bancos e empresas; no outro prato, as verbas destinadas a melhorar a qualidade de vida da população. Ou ainda, confrontar o ganho dos bancos nacionais, por exemplo, com os percentuais aplicados ao bolsa-família, entre outras políticas compensatórias.
Semelhante equação revela quais são os setores mais atingidos pela crise mundial. "A corda sempre rebenta do lado mais fraco", diz com razão a sabedoria popular. Os resultados estão bem à vista de todos: desemprego e subemprego crescentes, inadimplência cada vez maior, migrações em massa dos países e regiões pobres em direção a centros mais desenvolvidos. Entre todos, os imigrantes clandestinos parecem ser os mais vulneráveis.
II. Crise, excluídos e gritos anônimos
5. Os parágrafos da primeira parte mostram a trajetória de um modelo econômico que, ao mesmo tempo, produz riqueza e pobreza, especuladores e vítimas. Mostra também que, nos momentos de crise, o Estado se aparelha para proteger o patrimônio dos ricos, enquanto distribui algumas migalhas aos pobres. E mostra, ainda, quem são os rostos mais vulneráveis às crises cíclicas do capitalismo. Como uma tempestade, os ventos da crise devastam as plantas mais frágeis, as casas menos sólidas, as populações com menos raízes e menos proteção social e política.
São rostos que, ao mesmo tempo, escondem e revelam uma série de novos gritos. Em sua maioria nascem nos porões mais sórdidos, nas grotas mais longínquas, nas periferias mais abandonadas. São anônimos, não tem rosto nem voz, e costumam morrer sós e solitários. Numa palavra, são gritos esquecidos de multidões esquecidas! Ali raramente chega o discurso da organização. Quando muito chega uma cesta básica, acompanhada de uma promessa para as próximas eleições.
6. Diante desses gritos anônimos está o desafio do 15º Grito dos Excluídos deste ano. Primeiro, a prática de senti-los e ouvi-los, uma vez que surgem e desaparecem silenciosamente; depois, a tarefa de criar núcleos, grupos, organizações, debates abertos e democráticos, onde eles possam ter vez e voz; por fim, a capacidade de levá-los às ruas e praças, para desnudar a hipocrisia de uma sociedade que, simultaneamente, os gera e os procura esquecer.
E fazê-lo especialmente na Semana e no Dia da Pátria, para deixar claro que nosso país tem sim duas caras: a cara oficial dos símbolos, das armas e dos discursos políticos e a cara daqueles que sequer têm roupa decente para assistir aos desfiles do 7 de setembro. Daí o lema do Grito: "Vida em primeiro lugar: a força da transformação está na organização popular".
Esse processo tem sua trajetória própria. Começa com o trabalho de base, chamado de formiguinha; passa pela formação de espaços de conscientização, sensibilização e organização sócio-política; e finaliza na criação de uma rede mais ampla em defesa da soberania nacional e da democracia. Toda essa via requer uma atenção especial às formas de linguagem popular: o gesto, o teatro, a música, a dança, a poesia, a capoeira, entre tantas outras.
7. Porém, numa perspectiva mais continental ou mundial, a organização não tem fronteiras nacionais, como tampouco as tem a economia global. Daí a importância de fortalecer uma rede internacional de movimentos sociais, campanhas integradas e a luta pelos direitos humanos em sentido abrangente.
Não podemos esquecer, por fim, o grito da terra. Os cientistas e os movimentos ambientalistas não se cansam de nos alertar para os riscos que corre a vida sobre o planeta. A contaminação das águas e do ar, a escassez de água potável, o uso indiscriminado e injusto dos recursos naturais, a emissão de gás carbônico, entre os outros riscos, comprometem os diversos ecossistemas e a biodiversidade.
Gritam numerosas espécies de fauna e flora condenadas à extinção, gritam os peixes do mar e dos rios e lagoas, gritam milhões de atingidos por enchentes, inundações, furacões, e outras catástrofes "naturais". Naturais entre aspas, porque não passam de reações violentas da natureza ações igualmente violentas que sobre ela exerce o modelo econômico ocidental.
Para concluir, o que está em jogo não é apenas a construção de uma sociedade justa, democrática e solidária. Está em jogo o desafio de engendrar uma nova civilização, uma nova cultura, uma nova convivência: entre homens e mulheres, entre grupos e sociedades humanas e entre nós e a natureza.
* Assessor das Pastorais Sociais. Fonte: www.adital.com.br