* Antônio Possamai
"Desafios da Missão: Iniciação Cristã, Missão Continental e Missão Além-Fronteiras", foi o tema da 28ª Assembleia Geral do Conselho Missionário Nacional - COMINA, realizada em Brasília, de 12 a 15 de março. Um dos conferencistas foi dom Antônio Possamai, bispo emérito de Ji-Paraná, Rondônia, que debateu o tema em estudo.
* Antônio Possamai
Não sou especialista em Catequética. Apenas tenho algumas convicções que se baseiam na leitura que faço da história atual da nossa Igreja. Ao longo da minha vida pastoral tentei algumas experiências no sentido de dar outra direção ao processo de educação na fé, valorizando a iniciação cristã. Estas experiências nem sempre tiveram tanto êxito, mas algumas foram promissoras e gratificantes. Continuo alimentando a esperança de que um dia acontecerá uma total virada na condução do processo de acolhida e introdução do povo na nossa Igreja, bem como no processo de educação da fé.
Um pouco da realidade
Muito se tem escrito sobre o tema da iniciação cristã nestes últimos anos. O Diretório Nacional de Catequese dedica bom espaço para o tema. Entretanto, a caminhada vai prosseguindo muito lentamente.
Nossa Igreja do Brasil continua teimando em acreditar numa história que comprovadamente não tem dado certo. Falta a coragem eclesial de dar uma virada. Teima na prática de catequeses pontuais. Em vista dos sacramentos. Não em vista da vida cristã, da união entre fé e vida. Até mesmo a cúpula da Igreja se preocupa muito mais com dados estatísticos do que com a qualidade dos católicos, embora o Magistério da Igreja seja insistente ao apontar a necessidade de fé mais comprometida com a vida. A Encíclica Evangelii Nuntiandi (1975) poderia ter sido o grande passo para esta mudança. Este documento reprova uma catequese de tipo "verniz superficial".
Tomo a liberdade de citar alguns exemplos do nosso tradicional comportamento neste campo, comportamento muito distante de uma iniciação cristã: continuamos batizando crianças sem nos preocuparmos se há condições para entender que o batismo deve ser uma resposta a um chamado e sem entender o alcance e as consequências deste sacramento; continuamos com a "catequese" de primeira Eucaristia, e só, sem estarmos atentos ao "antes" e ao "depois", embora bastante atentos ao "dia": roupa, filmagens, fotografias, um pouco de atenção à liturgia, à festa na família e outros detalhes. O "antes" é a vida familiar, social e eclesial do candidato. O "depois" é a caminhada do "eucaristizado" dentro da comunidade. O mesmo acontece com a "catequese" de crisma. Crisma-se quando o candidato concluiu o programa e, normalmente, baseados unicamente no testemunho do catequista, excluída a comunidade que não acompanhou o candidato na sua caminhada eclesial e social; quase nenhuma catequese para o sacramento do matrimônio, para os poucos que ainda procuram este sacramento. Enfim, falta-nos a visão e o compromisso de "educar para viver a fé", educação que se projete em todas as circunstâncias da vida: familiar, eclesial, social, empresarial, política, jurídica etc. e que se estenda para toda a vida.
Fica então bem claro que dá para entender porque temos um catolicismo tão insignificante e tão dividido. Vejamos alguns exemplos: como nos queixarmos de que não temos vocações para os mais diversos ministérios consagrados ou leigos na Igreja se não fornecemos aos nossos católicos uma iniciação cristã que os leve a um encontro e a uma decisão pessoal com Cristo e com sua Igreja? Como nos queixarmos de que tenhamos tantos governantes dos três poderes constitucionais, tantos empresários tão injustos e tão corruptos se não os educamos na fé? Como nos queixarmos de que nossa juventude e nossos casais não valorizam o sacramento do matrimônio, e a família vai desmoronando? O que é que nos preocupa como missionários? O número ou a qualidade dos cristãos católicos?
Um pouco de história
Nos primeiros séculos do nosso tempo o processo para ingressar na Igreja era muito exigente. Era levado muito a sério o tempo do "catecumenato". Após o primeiro anúncio - querigma - se a resposta era "sim", o candidato ingressava no grupo dos catecúmenos. Era uma caminhada relativamente longa dependendo do progresso do candidato. Tinha duração variável, normalmente de dois a três anos. Entretanto, em alguns casos, este tempo poderia exigir até mais anos de preparação. Na Igreja primitiva este itinerário era muito exigente. Para os pagãos havia uma preparação catecumenal prévia ao batismo. Esta preparação consistia numa instrução na fé cristã e, sobretudo, tratava-se de criar no convertido uma nova conduta, pela participação na vida da comunidade eclesial. O catecumenato introduzia o convertido na vida da Igreja, no cerne dos três ministérios: da palavra, litúrgico e da conduta ou vivência cristã. Sem a demonstração concreta de trilhar o caminho de Jesus, o catecúmeno não era admitido e introduzido no seio da comunidade eclesial.
Temos o testemunho de alguns escritores, como Justino e Hipólito de Roma que afirmam que do século I em diante o catecumenato era uma instituição bem organizada. Os candidatos eram admitidos sob a condição de um exame de sua conduta ou comportamento, bem como das reais motivações da conversão. O imperador Constantino talvez estivesse bem intencionado quando decretou a liberdade para os cristãos viverem publicamente sua fé. Mas, sem prever, deu início a uma vida cristã sem coerência e sem compromisso. Ser cristão foi se tornando sempre mais fácil e até mesmo vantajoso.
O cristianismo aos poucos tornou-se a religião oficial do Império. Aos poucos os bispos foram se tornando príncipes, com suas roupagens e palácios, e, em certos casos, até mesmo administradores políticos e governadores de Estados, com seus exércitos, distanciando-se sempre mais do modelo de Jesus Cristo e do modelo dos Apóstolos. Havia, consequentemente, muitas vantagens. Ser cristão não oferecia mais perigos. E o catecumenato foi se extinguindo. Lá pelo século V, tinha praticamente desaparecido. E multidões iam ingressando na Igreja. Vivemos o nosso modo de ser cristão em decorrência deste fato até nossos dias. Não só fomos perdendo a qualidade de sermos fermento, sal e luz, mas, muito pior, como cristãos católicos somos motivos de escândalos e de páginas vergonhosas na nossa história. Fomos perdendo significado e deixando de ser admirados, como acontecia com as primeiras comunidades cristãs. E foram acontecendo fatos que, analisados em nossos dias, nos causam escândalo. Vejamos: os impérios católicos foram se expandindo, tomando terras, continentes com a cruz e a espada; povos nativos foram sendo sacrificados, negros foram sendo escravizados. Convenhamos: a atual situação da África deve-se ao comportamento das nações conquistadoras e colonizadoras, sempre cristãs (católicas ou protestantes). No Brasil, com destaque para a Amazônia, atualmente avançam o agronegócio, o desmatamento, as queimadas, a poluição do solo, das águas e do ar, a concentração da terra até mesmo mediante a contratação de pistoleiros, matando, e até, muitas vezes, colocando o nome de alguma santa na porteira da fazenda. Ainda como católicos não profetizamos contra um sistema neoliberal que provoca a falência da sociedade e aumentamos o número de famintos, de doentes, de mortos prematuramente. Promovemos guerras e, para alimentá-las, fabricamos armas as mais sofisticadas e mortíferas. É bom lembrar que grande parte das minas que aleijam e matam em Angola são fabricadas num país marcadamente católico como é o Brasil. E poderia continuar engrossando esta lista de vítimas de um cristianismo sem compromisso.
É urgente mudar
E agora? Faz-se urgente nos vestirmos de coragem para darmos uma virada na história. E o tempo está mais uma vez propício para nós, católicos, que vivemos na América Latina. O Espírito nos vem falando com insistência, como recentemente nos falou em Aparecida. O episcopado latino-americano e caribenho mostrou-se preocupado com este tema da Iniciação Cristã e deixou-nos ricos ensinamentos.
Tenhamos presente que estamos sendo convocados para uma Permanente Missão Continental. Não mais apenas periódicas Santas Missões Populares, por sinal muito valiosas; nem somente a celebração do mês missionário com sua oferta; nem mesmo tão somente com o envio de alguns missionários para regiões mais necessitadas; e muito menos restringindo a visão missionária à responsabilidade de algumas congregações religiosas. Aliás, desde o Vaticano II com a definição de Igreja como "Povo de Deus", participantes do munus profético, sacerdotal e servidor de Cristo recebemos o recado de sermos uma Igreja toda e sempre missionária. Infelizmente pouco caminhamos. E pensar que já se passaram mais de 50 anos desde que o Espírito falou de maneira tão forte!
E nem se trata somente de uma missão para que aumente o número de batizados e que frequente a missa dominical ou que batize seus filhos e contribua com o dízimo. Tudo isto será consequência de uma missão que tenha por base uma séria iniciação cristã que de fato eduque para a vivência da fé. Iniciação que deve atingir todas as pessoas de todas as idades.
Aparecida começa a tratar do tema da iniciação cristã vendo brevemente o que acontece com os católicos na América Latina e Caribe: "são muitos os cristãos que não participam da Eucaristia dominical nem recebem com regularidade os sacramentos nem se inserem ativamente na comunidade eclesial...
Temos alta porcentagem de católicos sem a consciência de sua missão de ser sal e fermento no mundo, com identidade cristã fraca e vulnerável" (DA 286).
Logo mais adiante julgar a realidade como um grande desafio que questiona a fundo a maneira como estamos educando na fé e como estamos alimentando a experiência cristã (DA 287).
E adianta uma convocação para mudar. É o agir: desafio que devemos encarar com decisão, coragem e criatividade, visto que em muitas partes a iniciação cristã tem sido pobre ou fragmentada... "Impõe-se a tarefa irrenunciável de oferecer modalidade de iniciação cristã, que além de marcar o quê, também dê elementos para o quem, e como e onde se realiza" (DA 287).
É a forma de assumir o desafio de uma nova evangelização para a qual já fomos muitas vezes convocados. Voltemos um pouco mais para a nossa história para que melhor entendamos a situação atual. A partir do século IV, com as "conversões" em massa, o catecumenato se reduziu ao tempo da Quaresma, quando se administrava aos convertidos uma catequese básica. Aparece então um fato novo: cresce o número de crianças ao batismo e diminui o número de adultos. Este fato novo explica a substituição da instrução pelo rito. A razão é o surgimento de uma determinada teologia do pecado original, que induzia a batizar as crianças o quanto antes.
Podemos então afirmar que as mudanças havidas no século IV desestruturaram a catequese, sem que até hoje se tenha encontrado uma resposta satisfatória a desafios que perduram desde essa época. O batismo das crianças antes do processo catequético, a primeira eucaristia no início deste processo e a confirmação no final do mesmo, dão a impressão de que a função da catequese é preparar para a recepção dos sacramentos. Sugere também que catequese é assunto de crianças. E com isto, desapareceu a catequese de iniciação. Tudo isso é reflexo de um modelo eclesiológico que ainda privilegia a sacramentalização.
Os resultados são estes de que falei anteriormente. A partir desta realidade marcada por tantas negatividades, devemos afirmar que é impossível ser um cristão sem passar por um processo de iniciação cristã. E tem mais: a iniciação cristã não pode ser feita somente pela pessoa da/o catequista porque a fé e o tesouro da mensagem evangélica são realidades que se recebem pessoalmente, mas através da comunidade. A iniciação cristã pressupõe uma comunidade de fé, no interior da qual o catequizando, uma vez inserido, é capaz de fazer um processo, que começa pela catequese de iniciação e continua com a catequese de adultos.
Este ensinamento nos obriga a pensar: o que se pode esperar de um catequizando que não vê e nem sente uma comunidade de fé? Pior ainda: de uma família que não vive a fé, mas apenas busca o rito?
Como se trata de iniciação ao cristianismo como um todo, entende-se por participação em uma comunidade concreta mais que a presença em atos de culto, na vida da Igreja como um todo.
Para a iniciação cristã, é muito importante o contexto no qual a comunidade e, dentro dela, catequizandos, catequistas, pais e padrinhos estão inseridos. O contexto é importante, não simplesmente por uma questão de buscar-se uma linguagem adequada para que se dê uma comunicação mais efetiva, mas, sobretudo, para que os catequizandos possam ir encarnando a fé cristã na vida pessoal, comunitária e social.
Voltando ao que nos ensina o Magistério da Igreja da América Latina, vejamos a provocação que nos faz Aparecida: "Temos alta porcentagem de católicos sem a consciência de sua missão de ser sal e fermento no mundo, com identidade cristã fraca e vulnerável" (DA 286). "Isto constitui um grande desafio que questiona a fundo a maneira como estamos educando na fé e como estamos alimentando a experiência cristã; desafio que devemos encarar com decisão, coragem e criatividade, visto que em muitas partes a iniciação cristã tem sido pobre ou fragmentada" (DA 287). E fala ainda mais fortemente: "Ou educamos na fé, colocando as pessoas realmente em contato com Jesus Cristo e convocando-as para segui-Lo, ou não cumpriremos nossa missão evangelizadora" (DA 287).
Paróquia e iniciação cristã
A iniciação cristã dá a possibilidade de uma aprendizagem gradual no conhecimento, no amor e no seguimento de Cristo. Desta forma, ela forja a identidade cristã com as convicções fundamentais e acompanha a busca do sentido da vida. Uma comunidade que assume a iniciação cristã renova sua vida comunitária e desperta seu caráter missionário.
Ensinam nossos bispos em Aparecida: a paróquia precisa ser o lugar onde se assegure a iniciação cristã e terá como tarefas irrenunciáveis: a) iniciar na vida cristã os adultos batizados e não suficientemente evangelizados; b) as crianças batizadas em um processo que as leve a completar sua iniciação cristã; c) os não-batizados que, havendo escutado o querigma, queiram abraçar a fé (DA 293). Continua nosso documento ensinando o seguinte: "Propomos que o processo catequético de formação adotado pela Igreja para a iniciação cristã seja assumido em todo o continente como a maneira ordinária e indispensável de introdução na vida cristã e como a catequese básica e fundamental" (DA 294).
Concluindo
Nestes últimos tempos o Espírito nos tem falado repetidas vezes e com muita insistência. Valem para nós as palavras do Salmo 95: "Quem dera que hoje ouvísseis sua voz; não endureçais os corações, como em Meriba, como no dia de Massa no deserto, onde vossos pais me tentaram, me provaram, apesar de terem visto as minhas obras".
Creio muito oportuno ir concluindo com esta citação de Aparecida. "Assumimos o compromisso de uma grande missão em todo o continente, que de nós exigirá aprofundar e enriquecer todas as razões e motivações que permitam converter cada cristão em discípulo missionário. Necessitamos desenvolver a dimensão missionária da vida de Cristo. A Igreja necessita de forte comoção que a impeça de se instalar na comodidade, no estancamento e na indiferença, à margem do sofrimento dos pobres do continente. Necessitamos que cada comunidade cristã se transforme num poderoso centro de irradiação da vida em Cristo. Esperamos por um novo Pentecostes que nos livre do cansaço, da desilusão, da acomodação ao ambiente; esperamos uma vida do Espírito que renove nossa alegria e nossa esperança" (DA 362).
E, finalmente: no episódio da Visitação, Maria, grávida de Jesus, nos dá duas lições: 1) tem pressa: "partiu apressadamente para a região montanhosa". 2) muito cedo iniciou seu Filho na vivência da sua missão: entrando na casa de Isabel e Zacarias tornou alegres aquelas pessoas e fez João pular de alegria no ventre de Isabel. O missionário vibra com a sua vocação.
* Dom Antônio Possamai é bispo emérito de Ji-Paraná, Rondônia.
Publicado na edição Nº04 - Maio 2009 - Revista Missões. www.revistamissoes.org.br