Caio Navarro de Toledo *
Há 45 anos - no dia em que o imaginário popular consagra ao "dia da mentira" -, era rompida a legalidade democrática vigente no país desde a derrubada da ditadura do Estado Novo (1937-1945).
Hoje, no Brasil, poucos serão aqueles que cometerão o despropósito de propor algum tipo de comemoração pública desta infausta data. Ao contrário, nestes dias, em instituições acadêmicas e entidades culturais e políticas, em sindicatos de trabalhadores, em jornais e revistas da grande imprensa e em blogs de jornalistas independentes deverão ocorrer debates que examinarão criticamente os significados e os efeitos do movimento de abril de 1964 na história política e cultural recente do país.
Certamente, nenhum veículo da grande mídia nacional ousará afirmar que o pós-1964 no Brasil - comparativamente às ditaduras militares sul-americanas ("mais cruéis", "mais violentas", etc,) - teria sido uma autêntica "ditabranda". Quem fez isso recentemente se deu muito mal...
Golpe ou revolução? - Àqueles que ainda insistem em denominar este movimento com a noção de "Revolução", deveríamos lembrar as palavras de um eminente protagonista daquele movimento. Em 1981, em celebrado depoimento, Ernesto Geisel declarou: "o que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções se fazem por uma idéia, em favor de uma doutrina".
Para o vitorioso de 1964, o movimento se fez "contra Goulart", "contra a corrupção", "contra a subversão, a baderna e a anarquia que destruíam o país". Estritamente falando, o ex-ditador reconheceu que o movimento liderado pelas Forças Armadas não era a favor da construção de algo novo no país. Era, sim, um movimento contra um estado generalizado de coisas que "infelicitavam o povo e a nação brasileira"...
Pertinentes, pois rejeitam a noção de revolução para caracterizar o 1º de abril de 1964, as formulações do militar golpista, no entanto, podem ser objeto de uma outra leitura. Assim, com legitimidade teórica, é possível ressignificar todos os "contras" presentes no depoimento do militar.
Mais apropriado seria então afirmar que 1964 representou: (a) um golpe contra a incipiente democracia política brasileira; (b) um movimento contra as reformas sociais e políticas; e (c) uma ação repressiva contra a politização das organizações dos trabalhadores e o extenso e rico debate de idéias que se desenrolava de norte a sul do país.
Em síntese, no pré-1964, as classes dominantes e seus aparelhos repressivos e ideológicos - diante das legítimas iniciativas e reivindicações dos trabalhadores no campo e na cidade e de setores das camadas médias -, apenas vislumbravam "crise de autoridade", "subversão da lei e da ordem", quebra dos sagrados preceitos da "disciplina e hierarquia" no interior das Forças Armadas e a "comunização" do país que implicaria a "destruição da família e da propriedade privada". Embora, por vezes, expressas de forma retórica, as demandas por reformas sociais e políticas, fundamentalmente, significavam o alargamento da democracia política e a realização de mudanças no capitalismo brasileiro.
Não se pode, contudo, deixar de reconhecer que, em toda a história republicana brasileira, o golpe contra as frágeis instituições políticas se constituiu em permanente ameaça. O fantasma do golpe rondou, em especial, os governos democráticos no pós-1946 e, com maior intensidade, a partir dos anos 1960. Pode ser dito que o governo Goulart nasceu, conviveu e morreu sob o espectro do golpe de Estado. Em abril de 1964, o golpe - permanentemente reivindicado por setores privilegiados da sociedade civil - foi, então, definitivamente vitorioso.
O golpe paralisou um rico e amplo debate político, ideológico e cultural que ocorria em órgãos governamentais, partidos políticos, associações e sindicatos de classe, entidades culturais, meios editoriais e de comunicação, etc. Nos anos 1960, conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas e comunistas formulavam publicamente suas propostas e se mobilizavam politicamente para defender seus projetos sociais e econômicos.
Se o governo Goulart e as forças progressistas tiveram alguma parcela de responsabilidade pelo agravamento da crise política no pré-1964, deve-se, contudo, enfatizar que quem planejou e desencadeou o golpe contra a democracia política foram as classes dominantes - apoiadas por setores médios e incentivadas por órgãos governamentais norte-americanos (Embaixada dos Estados Unidos, Departamento de Estado, Pentágono e outras agências de segurança) - e pela alta hierarquia das Forças Armadas brasileiras.
Destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais de esquerda e progressistas, o golpe foi saudado pelo conjunto do empresariado (industrial, rural, financeiro e investidores estrangeiros), pela alta cúpula da Igreja Católica, pela grande imprensa, etc. como uma autêntica "Revolução" - com a virtude maior de ter sido ela um movimento "pacífico" e "redentor". Aliviadas por não terem de se envolver militarmente no país, as autoridades norte-americanas congratularam-se com os militares e civis brasileiros pela "solução" que encontraram na superação da "grave crise política" enfrentada pelo país. Festejou a administração Lyndon Johnson (1963-1969) que uma nova (e grandiosa) Cuba teria sido evitada ao sul do Equador...
Embora tivesse simpática acolhida nos meios populares e sindicais, o governo Goulart ruiu como um castelo de areia. Dois de seus principais pilares de apoio - como apregoavam os setores nacionalistas - mostraram ser autênticas peças de ficção. De um lado, o propalado "dispositivo militar", comandado pelos chamados "generais do povo"; de outro, o chamado 4º poder que seria representado pelo Comando Geral dos Trabalhadores. Ambos assistiram - sem qualquer reação significativa - a queda inglória de um governo a quem juravam defender até com o sacrifício da morte...
É certo que as classes populares e trabalhadoras estiveram ausentes das chamadas "marchas em defesa da família e da propriedade" - organizadas por associações de mulheres católicas da alta burguesia e de setores médios - que, em algumas capitais do país, pediam ostensivamente a destituição de João Goulart. No entanto, as classes populares e os trabalhadores nada fizeram para evitar a derrubada de um governo que, a partir de fins de 1963, passou a defender de forma mais estridente as bandeiras do nacionalismo e das reformas sociais.
Por sua vez, as entidades políticas e os movimentos sociais - no campo e na cidade - que afirmavam representar os trabalhadores e os setores populares nenhuma gesto tiveram para se opor ou impedir o golpe que há muito tempo se anunciava no horizonte - nas conversas dos políticos, nas páginas dos jornais e revistas e nas passeatas de ruas. Desarmadas, desorganizadas e fragmentadas, as entidades progressistas e de esquerda - muitas delas caudatárias do governo Goulart - nenhuma resistência ofereceram à ação dos militares.
Poucas semanas antes de abril, algumas lideranças de esquerda afirmavam que os golpistas - caso atrevessem quebrar a ordem constitucional - teriam as "cabeças cortadas". Tratava-se, pois, de uma rompante metáfora... Com a ação dos "vitoriosos de abril", esta expressão, no entanto, se tornou uma dura e cruel realidade para muitos homens e mulheres durante os longos 20 anos de ditadura militar.
Quarenta e cinco anos depois, nada há, pois, a comemorar. Aos setores democráticos e progressistas ainda cabem inadiáveis tarefas na luta pela ampliação da democracia política no país; passados 45 anos, impõe que se faça justiça às vítimas da ditadura militar e que a verdade sobre os fatos ocorridos no período de 1964 a 1985 seja plenamente conhecida por todo o povo brasileiro.
*Professor colaborador do IFCH (Unicamp) e autor, entre outros de O Governo Goulart e o Golpe de 1964 e 1964 - Visões Críticas do Golpe (org., Editora Unicamp).
Fonte: Portal Vermelho