Flávia Piovesan/Tamara Amoroso Gonçalves
O Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) está cada vez mais rigoroso com relação à fiscalização da propaganda infantil. Se em 2007 sete comerciais foram suspensos pelo órgão, em 2008 o número foi para 17.
Qual seria o regime mais adequado à proteção dos direitos das crianças? Seria razoável a imposição de limites à publicidade infantil? Isso significaria uma restrição arbitrária à liberdade de comércio? Como equilibrar os direitos das crianças com a liberdade empresarial?
O tema ganha especial destaque no Legislativo, a partir de projeto de lei que determina a proibição de qualquer comunicação mercadológica destinada a crianças, aprovado pela Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara em 2008 e sob a apreciação da Comissão de Desenvolvimento Econômico, cujo parecer do relator defende ser a publicidade uma "atividade virtuosa, e não viciosa".
De acordo com o projeto, entende-se por comunicação mercadológica: "Toda e qualquer atividade de comunicação comercial para a divulgação de produtos e serviços, independentemente do suporte, da mídia ou do meio utilizado", o que abrange "a própria publicidade, anúncios impressos, comerciais televisivos, "spots" de rádio, "banners" e "sites" na internet, embalagens, promoções, "merchandising" e disposição dos produtos nos pontos-de-venda".
A comunicação mercadológica dirigida às crianças é aquela que faz uso de cenários fantasiosos, cores, músicas, personagens infantis e crianças modelo protagonizando os filmes publicitários. Pesquisas comprovam o impacto da propaganda endereçada à criança: contribui para a obesidade infantil (e outros distúrbios alimentares e doenças associadas), a erotização precoce, o estresse familiar e a violência, entre outros.
Na maioria dos países desenvolvidos e com forte tradição democrática -como Suécia, Inglaterra, Alemanha-, a restrição à publicidade que se dirige às crianças não contou com a resistência das empresas. Nos EUA e na Europa, as empresas multinacionais têm concordado com essa política de "autolimitação", comprometendo-se a restringir significativamente a publicidade destinada às crianças.
O mesmo não tem ocorrido no Brasil. No caso brasileiro, qualquer iniciativa de restrição e limitação suscita acirradas manifestações por parte do setor empresarial, sob o argumento de que tais propostas constituiriam atos de censura ou cerceamento da liberdade de expressão.
Não bastando a duplicidade de políticas empresariais adotadas em países desenvolvidos e em desenvolvimento, não há que confundir a publicidade e a liberdade de expressão.
A liberdade de expressão é direito consagrado no âmbito internacional e interno, enunciado em instrumentos de proteção de direitos humanos. Trata-se de um direito assegurado às pessoas físicas, abrangendo a livre manifestação do pensamento político, filosófico, religioso ou artístico. O alcance de tal direito não compreende a publicidade - atividade que utiliza meios artísticos visando essencialmente à venda de produtos.
Diferentemente de reportagens jornalísticas, veiculadas nos mais diversos meios de comunicação, a publicidade necessita adquirir um espaço na mídia para se alojar. A sua lógica é a mercantil, orientada pela equação de compra e venda de produtos.
Os parâmetros internacionais e constitucionais endossam a absoluta prevalência dos interesses da criança, seu interesse superior e a garantia de sua proteção integral, na qualidade de sujeito de direito em peculiar condição de desenvolvimento.
Nesse sentido, destacam-se a Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, a Constituição do Brasil de 1988 e o ECA. Ademais, organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde e o Comitê Permanente de Nutrição, reconhecem que a publicidade tem um papel central no desencadeamento de problemas alimentares, como a obesidade infantil.
Como a criança encontra-se em processo de desenvolvimento biopsicológico, não tem o discernimento necessário para compreender o caráter da publicidade, o que torna seu direcionamento às crianças abusivo e, por conseguinte, ilegal.
O clamor é o mesmo: a proteção da infância merece prevalecer ante o ilimitado exercício da atividade comercial concernente à comunicação mercadológica destinada às crianças.
Na agenda brasileira, emergencial é disciplinar o exercício da atividade publicitária. Restringir a publicidade endereçada às crianças não é ato de censura e tampouco ofensa à liberdade de expressão. É imperativo ético na defesa e proteção à infância.
* Doutora em direito constitucional e direitos humanos, membro do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa humana/advogada mestranda em direitos humanos.
Fonte: Folha de S. Paulo/Observatório do direito à comunicação