Roberto Malvezzi *
Mangabeira, primeiro, quis ouvir, inclusive os movimentos sociais. Eu fui uma das dez pessoas que pôde falar no auditório repleto do Centro de Cultura João Gilberto, Juazeiro, Bahia. Depois ele falou por quase uma hora.
Acho fundamental saber o que o ministro pensa da região e o que pensamos do pensamento do Ministro.
1. É louvável a proposta de uma concepção estratégica de desenvolvimento para o vale do São Francisco, para o Nordeste e, sobretudo, para o Brasil. Há mais de vinte anos a sociedade civil organizada do Nordeste sente a necessidade de que haja uma visão holística da realidade Nordestina, particularmente do semi-árido. Pensamos o vale do São Francisco nesse contexto. Portanto, concordamos.
2. Primeiro, Mangabeira ouviu. Falaram empresários, representantes de bancos, políticos, universidade, religiosos, sindicalistas e nós pelos movimentos sociais. Ouviu que a região tem potencial agrícola de sequeiro e irrigado; imenso potencial energético eólico e solar; um povo com sua cultura; uma região com os piores índices de IDH do planeta. Mas ouviu que há projetos em implementação, tecnologias sociais apropriadas em andamento, o projeto 1 milhão de cisternas, o projeto "Uma Terra e duas Águas", das riquezas gerada pela irrigação. Ouviu críticas à concentração da terra, água, riqueza e prevalência dos grandes grupos sobre a população originária da região.
3. Mangabeira ouviu e propôs sua estratégia em cinco vertentes: agricultura, indústria, educação, mineração e grandes projetos. Citou a agricultura de irrigação e sequeiro, a indústria de pequeno e médio porte, a educação focada no ensino médio - particularmente técnico - e grandes projetos, como a integração da malha ferroviária nordestina ao resto do país. Afirmou que o Nordeste não deve "querer ser S. Paulo", que aqui "está a vanguarda de um novo Brasil", "da reinvenção de um novo modelo desenvolvimento brasileiro". Afirmou ainda que o Nordeste passa por uma mudança nas suas lideranças políticas, porém, que "há um vazio intelectual no Nordeste desde Celso Furtado".
4. Chamou a atenção o fato do Ministro não se referir à fragilidade ambiental do semi-árido ou do São Francisco. Como uma espécie de resposta às nossas observações, disse que o "Cerrado era considerado inviável e hoje é o celeiro do Brasil". Para ele, parece que a técnica e a ciência são fetiches que resolvem todos os problemas da humanidade, inclusive os criados pela própria técnica e ciência. Não tocou na perspectiva grave do aquecimento global e suas conseqüências para o semi-árido, particularmente a diminuição no regime das chuvas, intensificação da evaporação da água e desertificação. Como pensar estrategicamente a região sem levar em consideração os cenários graves que a mudança climática traz para o semi-árido?
5. O Ministro também não considerou o pensamento e a práxis coletiva da sociedade civil que tem sim uma visão estratégica para o semi-árido, senão completa, ao menos para o meio rural, o que chamamos de "convivência com o semi-árido". Talvez o que ele chame de "vazio intelectual" seja a ausência de personalidades à altura de Celso Furtado, mas hoje há um pensamento e uma práxis coletivas que operacionaliza o que o Estado brasileiro nunca operacionalizou para as populações mais carentes. O fato de não haver mais saques, frentes de emergência e êxodo intenso do Nordeste para outras regiões, muito se deve ao que a sociedade civil desenvolveu nas últimas décadas, muitas vezes com colaboração e participação do governo.
6. Há ainda as propostas polêmicas, como focar o ensino médio e técnico, não o ensino fundamental. Estranho pensar o ensino médio sem a pedra do ensino fundamental, mas foi o que ele disse. Para nós, além disso, não existe educação se ela não for contextualizada. Nossas crianças precisam aprender o que é o semi-árido na própria sala de aula. Do contrário, também vão alimentar o preconceito contra si e contra a região na qual nascem e vivem.
7. A questão mais grave, entretanto, foi quando o Ministro afirmou publicamente - já afirmara antes para a mídia - que "a miséria imobiliza, desmotiva, portanto, o carro-chefe do desenvolvimento do Nordeste não pode ser os pobres, mas os batalhadores do povo, aqueles que têm dois ou três empregos, que vão à luta. Esses arrastarão os demais atrás de si. Portanto, não partir nem dos mais pobres, nem dos mais ricos, mas desses que vão à luta".
Dessa forma, Mangabeira cria dois impasses fundamentais em relação à região. O primeiro é em relação aos intelectuais, como se aqui houvesse mesmo um deserto de idéias. O segundo com os pobres do Nordeste. Francamente, deu arrepios ouvir o Ministro se pronunciar dessa forma. Será que ele desconhece a nova concepção semi-árido e Nordeste construída nos últimos vinte ou trinta anos? Será que ele acha mesmo que os pobres do Nordeste são imobilizados? Será quem em pleno século XXI o Ministro Mangabeira vai recriar a figura agora nordestina do "Jeca Tatu", criação de Monteiro Lobato sobre os caipiras do sul e sudeste, mito do qual mais tarde viria a se arrepender profundamente? Não é possível que o Ministro queira pensar o desenvolvimento estratégico do Nordeste a partir de um preconceito tão primitivo. Certamente ele não desconhece o que está acontecendo no Nordeste, conhece a história do Nordeste com suas infinitas rebeliões, conhece a força, a arte e a beleza do povo nordestino, inclusive os mais pobres. A primeira atitude de quem quiser mudar o Nordeste é mudar a si mesmo, despindo-se de toda idéia preconcebida. O Ministro precisa dessa conversão.
Ainda mais, esse sujeito social de vanguarda (sic!) "dos dois ou três empregos" parece fruto da imaginação. Será que ele fala desses migrantes, que trabalham na sua própria roça, depois mergulham em todos os canaviais do Brasil, tantas vezes no trabalho escravo, para ganhar seu pão? Impossível criar laços de vanguarda em pessoas tão dispersas, tão preocupadas com a sobrevivência de cada dia. Mas pode-se contar também com eles. A mudança do Nordeste não acontecerá sem seu povo, esse real, o sertanejo, esmagadora maioria submetida aos piores índices de desenvolvimento de todo o planeta. Sem nenhuma imodéstia, os governantes brasileiros e a intelectualidade das universidades têm muito a aprender com a sociedade civil articulada no Nordeste nos últimos vinte anos.
8. Enfim, à primeira vista, embora seja interessante que o governo brasileiro pense um desenvolvimento estratégico para o Nordeste e o Brasil, "onde a dimensão social esteja integrada ao núcleo do desenvolvimento econômico, não como apêndice" (palavras do Ministro) é preciso perguntar de qual estratégia estamos falando e a quem ela servirá. Não adianta o Ministro afirmar que o "Nordeste é a vanguarda do novo modelo de desenvolvimento brasileiro" se ele põe em dúvida a capacidade de reação da população mais pobre, exatamente a que deve ser sujeito de sua própria mudança. Também é impossível pensar o futuro do Nordeste sem pôr na equação desenvolvimentista a dimensão ambiental.
9. Há uma nova concepção de semi-árido e Nordeste hoje muito diferente de vinte ou trinta anos atrás. Fundamental que o Ministro - como dizia mestre Paulo Freire - esteja disposto a "aprender novamente o Nordeste". Esse seria o princípio básico para construirmos uma estratégia de desenvolvimento apropriada a essa região. Claro, como Ministro ele tem muito a contribuir.
* Coordenador da Comissão Pastoral da Terra
Fonte: Brasil de Fato